Velázquez, Wtewael e a cozinha


No início do século XVII, dois artistas de contextos culturais distintos criaram obras que transformaram a cozinha num palco onde se desenrola o drama entre a tentação terrena e a salvação espiritual. Joachim Wtewael, pintor holandês maneirista, e Diego Velázquez, mestre espanhol do barroco, utilizaram o espaço culinário como metáfora visual para explorar a tensão entre o mundo material e o espiritual, entre o corpo e a alma, entre o trabalho e a contemplação. As suas representações da cozinha revelam muito mais do que simples cenas domésticas – são reflexões profundas sobre a condição humana e a busca pela transcendência.

Nas pinturas de Wtewael e Velázquez, a cozinha funciona como um espaço de revelação onde o invisível se torna visível. Não é por acaso que ambos os artistas escolheram este ambiente para enquadrar narrativas bíblicas que tratam da tensão entre o material e o espiritual. A cozinha representa o local onde a natureza é transformada em cultura, onde o cru se torna cozido, onde o animal se torna alimento. Esta transformação física espelha uma transformação metafísica mais profunda que está no centro das parábolas representadas.

Na “Cena de Cozinha (Parábola da Grande Ceia)” de Wtewael, pintada em 1605, observamos um espaço caótico e sensual onde a preparação de alimentos ocupa o primeiro plano, enquanto a narrativa bíblica da Parábola da Grande Ceia (Lucas 14:12-24) é relegada para o fundo. Esta parábola conta a história de um senhor que, após ver os seus convidados recusarem o convite para um banquete, ordena aos seus servos que convidem os pobres e aleijados da vizinhança. A mensagem é clara: aqueles que rejeitam o convite divino perderão a oportunidade de salvação.

Velázquez, por sua vez, na sua “Cena de Cozinha com Cristo na Casa de Marta e Maria” (c. 1618), apresenta uma jovem triste a moer alimentos com almofariz e pilão, enquanto uma mulher mais velha a orienta. Peixes, ovos, alho e pimenta aguardam preparação. A cena bíblica aparece através de uma abertura no canto superior direito, pequena mas bem iluminada. A narrativa (Lucas 10:38-42) relata como Marta se queixa a Cristo que a sua irmã Maria se recusa a ajudar na cozinha, preferindo ouvir os ensinamentos de Jesus. Cristo responde que “Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”, sugerindo que, embora o trabalho doméstico de Marta seja louvável, o caminho espiritual seguido por Maria é superior.

Em ambas as obras, a cozinha é representada como um espaço de trabalho árduo, um local onde a realidade material da vida se manifesta em toda a sua crueza. Este aspeto é particularmente evidente na pintura de Wtewael, onde a cozinha é retratada como um espaço de atividade frenética. Os alimentos e utensílios de cozinha espalham-se desordenadamente, e crianças, animais de estimação e amantes contribuem para o tumulto de coisas e atividades no imenso interior. Esta desordem contrasta fortemente com o banquete ordenado que se vislumbra ao fundo.

A pintura mostra as várias etapas da preparação dos alimentos, desde o animal morto até aos pedaços cortados e às panelas no fogo. O que a cena carece em higiene, compensa em vivacidade. As figuras, mobiliário e alimentos movem-se vigorosamente pela tela. Há também uma alusão às recomendações médicas da época sobre a dieta equilibrada. Uma lebre e aves penduradas no canto superior esquerdo representam carnes complementares que equilibram humidade e secura, calor e frio, segundo as teorias médicas antigas que persistiam no século XVII.

Na obra de Velázquez, a jovem cozinheira parece triste enquanto trabalha na escura cozinha. Esta tristeza pode ser interpretada como um comentário sobre a passagem bíblica que a pintura ilustra: tal como Marta, a jovem labuta na cozinha, mas nunca alcança a igualdade com aqueles que praticam a vida contemplativa. A cozinha permanece a zona dos laboriosos e duros factos da vida.

No contexto da Reforma Protestante, quando as imagens religiosas se tornavam cada vez mais suspeitas, mesmo na Flandres católica, a imagem religiosa de Wtewael pode representar indecências idólatras devidamente diminuídas. A sua cena rabelaisiana parece questionar todo o conceito de arte religiosa.

Em contraste, na Espanha super-católica de Velázquez, é improvável que uma atitude semelhante em relação às imagens religiosas tenha influenciado o artista. Na sua obra, o tema do primeiro plano refina e elabora o episódio religioso no fundo. O primeiro plano não se opõe ao fundo; comenta-o. Ao ampliar a cena de género, Velázquez torna a sua narrativa bíblica mais “real”, mais relevante para a vida quotidiana na Espanha do século XVII.

A cozinha de Wtewael proporciona uma visão dos bastidores do banquete. O tema da cozinha em geral funciona como um espaço realista que revela as brutalidades e construções que estão por trás do artifício da refeição. As pessoas nas mesas de banquete ao fundo da pintura nada sabem sobre o que acontece na cozinha. Os observadores, no entanto, são admitidos na sala dos fundos e contemplam a árdua transmutação da natureza bruta em alimento produzido pelo homem.

Esta transformação da natureza em cultura através do processo culinário serve como uma poderosa metáfora para outros tipos de transformação – espiritual, social e pessoal. Nas pinturas de Wtewael e Velázquez, vemos este processo de transformação em ação, não apenas no nível físico dos alimentos, mas também no nível metafísico das almas humanas.

A figura com o almofariz e pilão na pintura de Wtewael alude à saúde – a necessidade de mistura completa é representada. Na cozinha, o material vivo mas resistente que sustenta toda a vida é mostrado; é a sala de trabalho da sobrevivência. De modo semelhante, na pintura de Velázquez, a jovem mói alimentos com almofariz e pilão, simbolizando o trabalho árduo necessário para sustentar a vida física, enquanto a cena espiritual ocorre em outro espaço.

As pinturas de cozinha também revelam as estruturas sociais e hierarquias da época. Na obra de Wtewael, a grandiosidade do espaço e a abundância de alimentos sugerem uma casa abastada. A cozinha é um espaço de serviço, separado do espaço nobre do banquete. Esta separação espacial reflete uma separação social entre aqueles que preparam os alimentos e aqueles que os consomem.

Na pintura de Velázquez, a hierarquia é ainda mais explícita. A mulher mais velha dirige a jovem, estabelecendo uma cadeia de comando dentro do próprio espaço da cozinha. Além disso, a separação entre a cozinha escura e o espaço iluminado onde Cristo e os seus discípulos se encontram simboliza a divisão entre o mundo material do trabalho e o mundo espiritual da contemplação.

Esta hierarquia reflete-se também na passagem bíblica que Velázquez ilustra. Cristo afirma que Maria escolheu “a melhor parte”, estabelecendo uma hierarquia entre a vida contemplativa (Maria) e a vida ativa (Marta). Esta hierarquia não é apenas espiritual, mas também social, pois na sociedade da época, o trabalho manual era considerado inferior à atividade intelectual ou espiritual.

O tema da cozinha como espaço de tensão entre o material e o espiritual não se limita às obras de Wtewael e Velázquez. Desde a Renascença até à arte contemporânea, a cozinha tem sido representada como um espaço onde se manifestam as contradições e tensões da condição humana.

Antes de Wtewael e Velázquez, Pieter Aertsen já havia explorado este tema nas suas inovadoras pinturas de mercado e cozinha. A sua “Cozinheira” de 1559 apresenta uma mulher robusta com vigor michelangelesco, quase a rebentar das suas roupas enquanto os seus músculos e ombros ondulam e incham. A lareira clássica grandiosa ao fundo indica que a cozinheira de Aertsen trabalha para algum empregador abastado.

Após Wtewael e Velázquez, o tema da cozinha continuou a evoluir. No século XVIII, a cozinha começou a ser representada como um espaço mais acolhedor e menos árduo. “A Criada” de Pieter Jacob Horemans, da segunda metade do século XVIII, retrata uma cozinheira bem vestida, ostentando uma flor decorativa e bebendo cerveja, que olha para o observador com contentamento e à vontade. Já não existe uma figura de robustez ou desajeitamento rude. A cozinha tornou-se um lugar aconchegante, com os utensílios facilmente ao alcance, os pratos arrumados, o fogo sob controlo.

No início do século XIX, o artista francês Martin Drölling representou outra cozinha amável. Embora o quarto contenha todo o tipo de objetos em desordem, permanece encantador. A sala de trabalho, decorada com flores caseiras, funciona como uma câmara para relaxamento familiar. O grupo sorridente de classe baixa toma o seu lugar na cozinha com calma segurança, e através da porta aberta aparece um vislumbre fascinante da natureza que enche o interior feliz com a luz do sol.

Esta evolução na representação da cozinha reflete mudanças sociais e culturais mais amplas. O abastecimento alimentar mais amplo do século XIX, bem como a perceção da culinária como uma arte refinada, pode explicar a nova leveza de espírito nas representações da cozinha.

Para além das interpretações religiosas e sociais, as pinturas de Wtewael e Velázquez também podem ser vistas como alegorias da transformação pessoal. A cozinha é o espaço onde os ingredientes crus são transformados em refeições elaboradas, assim como os seres humanos são transformados através das suas experiências e escolhas.

Na pintura de Wtewael, a desordem da cozinha pode representar o caos da vida humana, enquanto o banquete ordenado ao fundo simboliza o objetivo final de harmonia e plenitude. Na obra de Velázquez, a jovem triste que trabalha na cozinha pode representar a alma humana em busca de significado e propósito, enquanto a cena iluminada com Cristo simboliza a iluminação espiritual que aguarda aqueles que escolhem o caminho da contemplação.

Estas interpretações ressoam com a tradição alquímica, que frequentemente utilizava metáforas culinárias para descrever a transformação espiritual. O processo de cozinhar, com as suas várias etapas de preparação, cozimento e refinamento, espelha o processo alquímico de transformação da matéria prima em ouro, ou da alma impura em espírito purificado.

A cozinha é revelada como um microcosmo da condição humana, um espaço onde se manifestam as tensões fundamentais entre corpo e alma, trabalho e contemplação, natureza e cultura. Através das suas representações, estes artistas convidam-nos a refletir sobre as nossas próprias escolhas e prioridades, sobre o equilíbrio entre as necessidades materiais e as aspirações espirituais.

Neste sentido, as pinturas de Wtewael e Velázquez continuam a ressoar connosco hoje, num mundo onde as tensões entre o material e o espiritual, entre o trabalho e o lazer, entre o consumo e a contemplação, permanecem tão relevantes como sempre. A cozinha, como palco de tentação e salvação, continua a ser um poderoso símbolo da nossa condição humana, dividida entre as exigências do corpo e as aspirações da alma.

Literatura recomendada
Bendiner, Kenneth. Food in Painting: From the Renaissance to the Present. Reaktion Books, 2004.
Bryson, Norman. Looking at the Overlooked: Four Essays on Still Life Painting. Harvard University Press, 1990.
Lowenthal, Anne W. Joachim Wtewael and Dutch Mannerism. Doornspijk, 1986.

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