
No universo hermético das conservas alimentares, onde o conteúdo permanece invisível até ao momento do consumo, o rótulo assume um papel fundamental como intermediário entre o produtor e o consumidor. A indústria italiana de conservas, particularmente a de derivados de tomate, destacou-se no panorama internacional durante o século XX, transformando o rótulo num elemento crucial para conquistar a confiança dos consumidores. Como poderia um simples pedaço de papel colado numa lata metálica convencer alguém a adquirir um produto que não conseguia ver, cheirar ou provar? Esta questão esteve no centro das estratégias de comunicação visual que evoluíram ao longo do século passado.
A tríade invisível: conteúdo, recipiente e rótulo
Os produtos enlatados possuem uma complexidade intrínseca, sendo compostos por três elementos distintos: o conteúdo alimentar, o recipiente metálico e o rótulo. Cada um destes componentes estimula os sentidos de forma diferente. A lata, enquanto contentor, protege o alimento de agentes externos e preserva a sua integridade ao longo do tempo, mas simultaneamente oculta o seu conteúdo, limitando o conhecimento que o consumidor pode ter sobre ele. O rótulo, por sua vez, assume a responsabilidade de dar visibilidade ao que está escondido, descrevendo-o e tornando-o atraente.
O primeiro contacto do consumidor com estes alimentos ocorre através do rótulo, que transmite uma série de informações destinadas a encorajar a compra de um produto que não pode ser visto. Esta característica única dos alimentos enlatados criou um desafio particular para os fabricantes: como superar a desconfiança natural dos consumidores perante um alimento oculto?
No início do século XX, os rótulos italianos eram predominantemente visuais, com imagens apelativas e cores vivas que procuravam sugerir a qualidade do produto. O rótulo fornece a única forma de determinar quais os ingredientes e aditivos presentes em alimentos tipicamente fabricados com corantes, conservantes e aromas artificiais para aumentar a sua desejabilidade e prazo de validade.
Da promoção à proteção: a evolução legislativa
A evolução dos rótulos alimentares em Itália pode ser dividida em três fases distintas. A primeira teve início durante o período fascista, quando foram introduzidas as primeiras regras de rotulagem através da lei de 1923, que disciplinava o setor de vegetais em conserva. É significativo notar que esta legislação foi solicitada pelas próprias empresas para proteger os seus interesses, e não os dos consumidores.
A segunda fase começou com a lei de 1962, promovida por instituições públicas e orientada para a proteção do consumidor, num período de crescente consumo doméstico e de preocupação com o aumento do uso de aditivos químicos na indústria alimentar. Que mudanças sociais motivaram esta alteração de paradigma? O aumento dos níveis de literacia e do rendimento per capita, a melhoria dos padrões de vida e a crescente presença de organizações de proteção do consumidor foram fatores determinantes.
A terceira fase, iniciada no final da década de 1970, foi marcada pela introdução da legislação da Comunidade Europeia dedicada especificamente à rotulagem de alimentos embalados, representando um ponto de partida para o desenvolvimento de uma linguagem comum europeia de rotulagem alimentar. A diretiva 79/112/CE do Parlamento Europeu, aprovada em 1979, sobre a “aproximação das legislações dos Estados-Membros relativas à rotulagem, apresentação e publicidade dos géneros alimentícios destinados ao consumidor final”, foi o início de um processo que levaria à formação de um conjunto de regulamentos específicos.
Esta diretiva foi introduzida em Itália como lei 1982/322, representando a primeira legislação dedicada especificamente à rotulagem de produtos. As suas principais inovações legislativas incluíam a obrigação de imprimir a data de validade no rótulo (em vez da data de embalagem), bem como instruções para utilização e armazenamento do produto e a lista de ingredientes, incluindo aditivos.
A linguagem visual e textual: uma disputa por espaço
À medida que a quantidade e qualidade da informação aumentavam, os rótulos tornaram-se mais complexos, transformando-se num espaço limitado onde imagens, cores e palavras disputam território entre si. O texto passou a ocupar consideravelmente mais espaço do que as imagens, com cerca de dez palavras a serem utilizadas no início do século XX em comparação com mais de 200 nos rótulos modernos.
A mensagem visual (por exemplo, o nome da marca inserido numa forma de coração e tomates volumosos com gotículas de orvalho num fundo azul intenso) é a primeira a atrair a atenção do consumidor. O texto escrito, juntamente com as informações exigidas por lei, também pode ser utilizado para estimular os sentidos, descrevendo a história do produto, as suas origens e os sabores únicos do seu território nativo, como no caso do tomate San Marzano, cujas propriedades organoléticas foram recentemente redescobertas e novamente apreciadas.
Este tipo de informação ganhou mais atenção com o surgimento de hábitos alimentares mais focados nas propriedades únicas dos alimentos de acordo com as condições ambientais particulares em que foram cultivados. Será que um consumidor típico tem tempo para ler todas as informações no rótulo enquanto está diante de uma prateleira de supermercado? Provavelmente não, mas poderá examiná-las com mais atenção mais tarde, talvez enquanto prepara uma refeição, e tendo-as memorizado, estará melhor informado ao fazer compras futuras.
A transformação do rótulo: de vendedor a educador
A evolução da linguagem de rotulagem alimentar ao longo do século XX, viu a mensagem escrita gradualmente prevalecer sobre a sua contraparte visual, descrevendo um produto que os sentidos dos consumidores não conseguiam perceber diretamente. Em Itália, este papel emergiu gradualmente e sob o impulso de fatores socioeconómicos em mudança.
Um ditado popular italiano afirma que se come primeiro com os olhos e depois com a boca, enfatizando a prioridade da visão sobre os outros sentidos em relação à comida, pelo menos no momento da compra. Isto é particularmente verdade no caso dos alimentos enlatados.
O rótulo transformou-se assim de um dispositivo principalmente promocional para um elemento que desempenha a função adicional de salvaguardar a saúde dos consumidores. Uma vez que o consumidor não pode discernir o conteúdo de uma lata confiando apenas nos sentidos, o rótulo fornece a única forma de determinar quais os ingredientes e aditivos presentes em alimentos tipicamente fabricados com corantes, conservantes e aromas artificiais para aumentar a sua desejabilidade e prazo de validade.
O rótulo, inicialmente concebido como uma ferramenta de marketing, transformou-se num instrumento de educação e proteção do consumidor, ilustrando como as práticas comerciais podem adaptar-se às exigências sociais em constante mudança.