
Na Europa cristã, o peixe transcendeu o simples papel de alimento para se tornar um elemento carregado de significados religiosos, económicos e sociais. Enquanto a Igreja impunha dias de abstinência de carne, criava-se um paradoxo: o que deveria ser penitência para todos transformava-se em privilégio para poucos. Como poderia um alimento destinado à mortificação da carne tornar-se símbolo de opulência? Esta contradição revela muito sobre as estruturas sociais e económicas da Europa pré-moderna, onde o acesso ao peixe de qualidade estabelecia fronteiras claras entre classes sociais, transformando a mesa num palco onde se representavam as hierarquias do poder.
A Igreja Católica estabeleceu um rigoroso calendário de abstinência que proibia o consumo de carne às sextas-feiras, sábados, durante a Quaresma e em numerosos dias santos. Esta restrição abrangia aproximadamente um terço do ano, criando uma enorme procura por alternativas proteicas. O peixe, não sendo considerado carne, tornou-se a solução natural para estas imposições dietéticas. Voltaire, com a sua característica ironia, observou este fenómeno no seu Dicionário Filosófico: “se um pobre homem roesse um osso de carneiro numa sexta-feira, iria diretamente para o inferno, enquanto aqueles que, no mesmo dia, comprassem e comessem douradas marinhas encontrariam as portas do paraíso abertas para eles”.
Esta observação mordaz expõe a hipocrisia de um sistema que transformava a abstinência religiosa num mecanismo de distinção social. Os ricos podiam cumprir as regras religiosas sem sacrifício real, enquanto os pobres enfrentavam verdadeiras dificuldades para obedecer aos preceitos da Igreja. Não seria esta uma perversão do próprio conceito de penitência?
A força destas imposições religiosas era tal que, ainda no século XVII, documentos históricos relatam casos como o de um taberneiro em Vado Ligure que foi obrigado a fechar o seu estabelecimento por mais de uma semana por ter servido carne numa sexta-feira. A sua defesa de que o cliente era estrangeiro não foi aceite, demonstrando como estas regras alimentares estavam profundamente enraizadas na sociedade europeia.
A geografia e as limitações tecnológicas criaram uma clara hierarquia no consumo de peixe. Os peixes de água salgada, especialmente os de carne branca e grande porte como o robalo e a dourada, eram reservados às mesas aristocráticas. Estes peixes, capturados individualmente com linha e não em redes, eram raros e caros, chegando a custar dez a vinte vezes mais que a melhor carne disponível.
Em contraste, os chamados “peixes do povo” – sardinhas, anchovas e cavalas – eram capturados em grandes quantidades com redes e considerados inferiores. Esta distinção não era apenas económica, mas também cultural: comer certos tipos de peixe era visto como sinal de pobreza, algo vergonhoso. Antes da Segunda Guerra Mundial, ser visto a comprar “potassoli” (badejo) era motivo de pena, especialmente entre os próprios pobres. Na foz do rio em Imperia, havia pessoas que preferiam não comer a serem vistas a comprar peixe.
Esta hierarquia piscícola refletia-se também na literatura culinária da época. Os livros de receitas dedicavam muito mais espaço aos peixes de água doce como a enguia, a lampreia e o lúcio, que podiam ser transportados vivos ou criados em viveiros, do que aos peixes marinhos de pequeno porte. A disponibilidade previsível de um produto tornava-o mais conhecido e, consequentemente, mais presente nas preparações culinárias.
Curiosamente, esta hierarquia inverteu-se em tempos recentes. As anchovas, outrora desprezadas como “peixe de pobres”, tornaram-se mais caras que os peixes de carne branca, sendo agora apreciadas pela burguesia abastada. Os gregos chamariam a isto a vingança do destino, ou Némesis.
Os desafios logísticos do transporte de peixe fresco na Europa pré-moderna eram imensos. Como transportar um produto altamente perecível por longas distâncias numa época sem refrigeração? As distâncias que hoje medimos em quilómetros eram então medidas em dias, e o tempo necessário para transportar peixe do mar para o interior era frequentemente excessivo.
Os peixes pequenos raramente chegavam aos vales que se abriam para o mar. Anchovas e sardinhas, transportadas durante horas em mulas, chegavam ao destino em condições deploráveis. No interior, as anchovas só eram conhecidas na sua forma salgada. Para chegar a uma mesa no coração da Europa, um peixe do oceano podia levar vários dias, tempo demasiado longo para peixes pequenos, que chegariam podres no verão e em más condições em qualquer estação.
As limitações tecnológicas da pesca também contribuíam para a escassez. As redes eram feitas à mão, nó por nó, com fio de algodão, tornando-as extremamente caras, por vezes mais que o próprio barco. Sem nylon ou aço, as cordas eram feitas de fibras vegetais que, mesmo escolhidas entre as que absorviam menos água, tornavam-se pesadas quando molhadas. Estas cordas, puxadas à mão, tinham de arrastar toda a rede para o barco ou para terra.
A profundidade de pesca também era limitada. O que era possível no Adriático ou no Báltico não o era no muito mais profundo Mar Tirreno. Os primeiros lagostins do Tirreno só foram descobertos em 1925, e os primeiros camarões vermelhos foram capturados em 1930, quando equipamentos modernos permitiram finalmente alcançar as profundidades onde estas espécies habitavam.
Face às dificuldades de obtenção de peixe fresco, diferentes regiões europeias desenvolveram soluções engenhosas para garantir o fornecimento de proteína nos dias de abstinência. Os noruegueses a norte de Bergen aproveitaram o clima propício para secar o bacalhau (stockfish), enquanto ingleses e holandeses recorreram à salga (bacalhau), tal como os islandeses e mediterrânicos, que dispunham de abundantes reservas de sal.
Quando a secagem ao ar não era viável, podia-se recorrer à defumação, que, entre outras vantagens, permitia maior economia no uso do sal. Esta técnica era comum na Áustria, Boémia e Tirol para a carne de porco, e na Irlanda, Escócia, Noruega e Rússia para o salmão e o esturjão.
Os holandeses fizeram uma descoberta de grande importância: a salga do arenque no momento da captura. Isto aconteceu por volta de meados ou finais do século XV, e a partir desse momento os pescadores já não precisavam de regressar aos seus portos de origem para salgar a captura, que se teria degradado consideravelmente durante a viagem de regresso. Agora o arenque ficava salgado no porão do barco de pesca, obtendo-se um produto muito melhor.
Nas regiões interiores, os vales tinham um recurso muito valioso: a enguia. Esta era um recurso importante, pois podia ser transportada viva e, à chegada, mantida viva nos tanques que os romanos chamavam apropriadamente de viveiros de peixes (piscinae). Por esta razão, os livros de receitas estão cheios de receitas para enguia e lampreia (que também podia ser transportada viva), bem como para carpa e tenca, que também povoavam os viveiros de príncipes e mosteiros, assim como os da burguesia e dos moleiros que geriam os moinhos de água.
Estas adaptações regionais não eram apenas respostas práticas a desafios logísticos, mas também expressões culturais que moldaram profundamente as tradições culinárias europeias. O que começou como necessidade rapidamente se transformou em preferência, com produtos como o bacalhau seco, o arenque salgado e a enguia a tornarem-se elementos centrais das cozinhas regionais.
A história do peixe na Europa cristã é, portanto, uma história de paradoxos. Um alimento que deveria simbolizar penitência tornou-se símbolo de estatuto. Um produto que deveria unir os cristãos na abstinência acabou por dividir a sociedade entre os que podiam e os que não podiam cumprir os preceitos religiosos com dignidade. E, talvez o mais interessante, um alimento que era desprezado pelos poderosos acabou por se tornar, séculos mais tarde, uma iguaria apreciada pelos mais abastados.
Esta inversão de valores alimentares lembra-nos que os gostos não são inatos, mas construídos socialmente. O que consideramos delicioso ou repugnante, prestigioso ou vergonhoso, é determinado não apenas pelas propriedades intrínsecas dos alimentos, mas também pelo seu significado cultural, pelo seu valor económico e pela sua posição nas hierarquias sociais. O peixe, na sua jornada das águas profundas às mesas europeias, não transportava apenas proteínas, mas também significados, valores e distinções sociais que ajudaram a definir o que significava ser rico ou pobre, poderoso ou subserviente, na Europa cristã.



