O método científico na gastronomia Iluminista

Grande plano de uma bancada de cozinha, com diversas especiarias e alimentos, em segundo plano a imagem de uma mulher

No efervescente contexto intelectual do século XVIII, enquanto a Europa vivia a revolução das ideias que caracterizou o Iluminismo, uma transformação silenciosa ocorria nas cozinhas aristocráticas francesas. Os chefs, tradicionalmente vistos como meros artesãos, começaram a apresentar-se como praticantes de uma ciência sofisticada, comparando explicitamente os seus métodos aos dos químicos que ganhavam prestígio nos círculos académicos da época. Esta nova abordagem à culinária não representava apenas uma mudança técnica, mas uma profunda reorientação cultural que elevou o estatuto social dos cozinheiros e redefiniu a gastronomia como um campo digno de investigação sistemática e rigorosa.

No século XVIII, a cozinha aristocrática francesa transformou-se num verdadeiro laboratório experimental, onde os chefs aplicavam princípios científicos para criar e aperfeiçoar os seus pratos. Esta metamorfose não aconteceu por acaso, mas como parte de um movimento mais amplo que valorizava a razão, a experimentação e o conhecimento empírico. Como poderia a culinária permanecer imune a esta revolução intelectual? A resposta é simples: não podia, e não permaneceu.

Um dos exemplos mais significativos desta nova abordagem encontra-se na obra Les Dons de Comus (As Dádivas de Comus), publicada em 1739. A introdução deste influente livro de culinária, escrita por dois padres jesuítas, afirmava explicitamente que a nova cozinha era nutritiva e facilmente digerível, podendo até prevenir a gota e cálculos renais. O autor, François Marin, preferia animais e vegetais no ponto ideal de maturação, animais pequenos em vez de grandes, e aqueles que eram secos em vez de oleosos ou gordurosos. Defendia alimentos retirados do seu ambiente natural, em oposição a animais artificialmente engordados em gaiolas e estábulos, ou vegetais cultivados em estufas. Significativamente, Marin comparava a cozinha à química, estabelecendo uma ligação direta entre estas duas áreas de conhecimento.

Esta analogia entre cozinha e química não era meramente retórica. Os chefs da época começaram a adotar uma abordagem verdadeiramente experimental, testando sistematicamente diferentes combinações de ingredientes, temperaturas e técnicas de cozedura. Registavam os seus resultados, refinavam os seus métodos e partilhavam os seus conhecimentos através de publicações cada vez mais detalhadas e precisas. A cozinha tornava-se, assim, um espaço de investigação científica, onde os princípios do método experimental eram aplicados à criação gastronómica.

A chamada nouvelle cuisine do século XVIII (não confundir com o movimento homónimo do século XX) representou uma revolução tanto metodológica quanto filosófica na arte culinária. Que princípios fundamentais caracterizavam esta nova abordagem? Essencialmente, tratava-se de uma rejeição dos excessos barrocos da cozinha tradicional em favor de uma simplicidade elegante que permitia aos ingredientes expressarem os seus sabores naturais.

Esta nova cozinha enfatizava o uso de molhos, caldos, consommés e coulis. Estas preparações eram reduzidas por fervura ou cozedura lenta para concentrar os sabores naturais. Os autores de livros de culinária falavam da delicadeza, refinamento e simplicidade natural dos alimentos, embora estes pratos “simples” por vezes exigissem preparações bastante complexas. Os livros de culinária também incluíam discussões sobre a filosofia e a ciência do gosto, que refletiam ideias associadas ao pensamento iluminista.

Um exemplo paradigmático desta tendência encontra-se em Les soupers de la cour (Os Jantares da Corte), uma obra anónima em quatro volumes publicada em 1755. Esta enciclopédia culinária foi o último grande texto culinário francês antes da revolução de 1789 e influenciou outras cortes reais e a gastronomia das classes altas noutras partes da Europa. A sua abordagem sistemática e enciclopédica ao conhecimento culinário espelhava o projeto iluminista mais amplo de catalogar e racionalizar todo o conhecimento humano.

A nouvelle cuisine do século XVIII não se limitava a uma questão de sabor ou estética. Incorporava também preocupações com a saúde e a nutrição, refletindo as novas descobertas científicas sobre o corpo humano e o seu funcionamento. Os chefs começaram a considerar como os diferentes métodos de preparação afetavam a digestibilidade dos alimentos e o seu impacto no bem-estar físico. Não seria exagero afirmar que estes cozinheiros-cientistas anteciparam, de certa forma, a moderna ciência da nutrição.

A comparação entre cozinha e química manifestava-se de forma mais evidente nas técnicas específicas desenvolvidas pelos chefs do século XVIII. Que processos concretos exemplificavam esta abordagem científica? Um dos mais importantes era a extração e concentração de sabores através de processos como a redução, a destilação e a infusão.

Antoine-Augustin Parmentier, farmacêutico e nutricionista francês, aplicou princípios químicos à análise de alimentos, particularmente da batata, que ajudou a popularizar na França. Os seus estudos sobre a composição química dos alimentos e as transformações que ocorriam durante o cozimento representavam uma ponte direta entre a química académica e a prática culinária.

Os chefs da época começaram a compreender que o calor não apenas cozinhava os alimentos, mas desencadeava reações químicas complexas que alteravam fundamentalmente as suas propriedades. Aprenderam a controlar estas reações para obter resultados específicos, como o desenvolvimento de sabores através da reação de Maillard (embora ainda não fosse conhecida por este nome), que ocorre quando as proteínas e os açúcares são aquecidos juntos, produzindo compostos aromáticos complexos.

A emulsificação tornou-se uma técnica fundamental, permitindo a combinação estável de líquidos normalmente imiscíveis, como água e gordura, para criar molhos como a hollandaise e a béarnaise. Os chefs compreenderam empiricamente os princípios físico-químicos subjacentes a estas preparações, mesmo sem o vocabulário científico moderno para os descrever.

Marie-Antoine Carême, que viria a tornar-se um dos mais influentes chefs do início do século XIX, começou a sua carreira no final do século XVIII e sistematizou muitas destas técnicas. A sua abordagem metódica à classificação dos molhos em famílias básicas, cada uma com princípios químicos subjacentes comuns, exemplifica a mentalidade científica que se havia estabelecido na alta cozinha francesa.

A transformação da cozinha em ciência não ocorreu num vácuo social. Pelo contrário, estava profundamente entrelaçada com as mudanças sociais e culturais mais amplas do Iluminismo.

Com a abolição das guildas comerciais durante o fervor revolucionário da década de 1790, os trabalhadores culinários ganharam maior liberdade para avançar nas suas carreiras. O termo “Chef de Cuisine”, significando chefe ou líder da cozinha, era novo no início do século XIX, e Antonin (ou Marie-Antoine) Carême criou a persona do chef francês moderno. Ascendendo de origens empobrecidas, cozinhou para as elites europeias, incluindo Napoleão, o príncipe regente da Inglaterra e o financeiro Barão James de Rothschild. Carême era um homem que se fez por si próprio e um autopromotor que se tornou uma celebridade culinária.

A gastronomia começou a ser vista não apenas como uma arte ou ofício, mas como uma disciplina intelectual com as suas próprias regras, princípios e corpo de conhecimento. Jean Anthelme Brillat-Savarin, no seu influente tratado Physiologie du Goût (Fisiologia do Gosto, 1825), articulou esta visão da gastronomia como uma ciência social que abrangia não apenas a preparação de alimentos, mas também a sua apreciação, história e papel na sociedade.

O desenvolvimento de um discurso gastronómico sofisticado, com o seu próprio vocabulário técnico e conceptual, paralelo ao desenvolvimento da linguagem científica, foi um aspeto crucial desta transformação. Os chefs e escritores gastronómicos criaram um léxico especializado que lhes permitia discutir e analisar a comida com a mesma precisão e rigor que os cientistas aplicavam aos fenómenos naturais.

Esta elevação do estatuto da gastronomia teve implicações significativas para a mobilidade social. Através do domínio do conhecimento culinário científico, indivíduos de origens humildes, como Carême, podiam ascender a posições de prestígio e influência, desafiando as rígidas hierarquias sociais do Antigo Regime.

A abordagem científica à culinária iniciada no século XVIII continua a influenciar a gastronomia contemporânea. Que linhas de continuidade podemos traçar entre os chefs-cientistas do Iluminismo e os praticantes da moderna gastronomia molecular?

A gastronomia molecular, termo cunhado pelo físico Nicholas Kurti e pelo químico Hervé This na década de 1980, representa a culminação lógica da trajetória iniciada no século XVIII. Esta disciplina aplica princípios científicos, particularmente da química e da física, para compreender e manipular as transformações que ocorrem durante o cozimento.

Chefs contemporâneos como Ferran Adrià, Heston Blumenthal e René Redzepi utilizam técnicas avançadas como esferificação, gelificação e cozedura sous-vide que, embora apoiadas por tecnologia moderna, partilham o mesmo espírito experimental e a mesma busca pela compreensão fundamental dos processos culinários que motivaram os seus antecessores do século XVIII.

A diferença fundamental reside no grau de precisão e controlo que a tecnologia moderna permite. Enquanto os chefs do Iluminismo dependiam principalmente da observação empírica e da experiência acumulada, os praticantes contemporâneos da gastronomia molecular têm acesso a equipamentos de laboratório, análises químicas precisas e uma compreensão teórica avançada dos processos envolvidos.

No entanto, o impulso básico permanece o mesmo: compreender a comida como um sistema complexo governado por princípios científicos identificáveis e manipuláveis. Neste sentido, os chefs do século XVIII que comparavam a sua arte à química foram verdadeiros pioneiros, estabelecendo as bases intelectuais para o que viria a tornar-se uma das mais inovadoras áreas da gastronomia contemporânea.

A ligação entre ciência e culinária, forjada no cadinho intelectual do Iluminismo, continua a ser um motor de inovação gastronómica. À medida que novas descobertas científicas emergem, particularmente nos campos da neurociência sensorial e da psicologia da perceção, a nossa compreensão da experiência gastronómica continua a evoluir, mantendo vivo o legado dos chefs-cientistas do século XVIII.

Literatura recomendada
Poulain, Jean-Pierre. Sociologias da Alimentação: Os Comedores e o Espaço Social Alimentar. Editora UFSC, 2013.
This, Hervé. Molecular Gastronomy: Exploring the Science of Flavor. Columbia University Press, 2006.
Trubek, Amy B. Haute Cuisine: How the French Invented the Culinary Profession. University of Pennsylvania Press, 2000.

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