O Llibre de Sent Soví


No ano de 1324, enquanto a Europa medieval vivia transformações políticas e culturais profundas, um manuscrito anónimo surgia na Catalunha, estabelecendo um marco na história da gastronomia ibérica. O Llibre de Sent Soví, originalmente intitulado Llibre de totes maneres de potages de menjar, representa não apenas o primeiro registo sistemático de receitas culinárias da Península Ibérica, mas também um documento histórico que revela a complexa teia de influências culturais que moldaram a identidade gastronómica mediterrânica. Este manuscrito, com as suas duzentas receitas meticulosamente registadas, oferece-nos uma janela para compreender como a cozinha catalã medieval funcionava como ponto de convergência entre tradições romanas, islâmicas e cristãs, num período em que a Coroa de Aragão expandia a sua influência pelo Mediterrâneo, criando uma rede de intercâmbios comerciais e culturais que enriqueceram substancialmente o seu património culinário.

O Llibre de Sent Soví emergiu num momento particularmente significativo da história ibérica. A Catalunha do século XIV encontrava-se no auge da sua expansão mediterrânica, com a Coroa de Aragão a estender o seu domínio sobre territórios como a Sicília, a Sardenha e, posteriormente, Nápoles. Esta posição estratégica transformou a região num centro nevrálgico de trocas comerciais e culturais, onde convergiam produtos, técnicas e tradições culinárias de diversas origens.

O manuscrito, de autor desconhecido, foi escrito em catalão, o que por si só constitui um facto notável, pois demonstra a importância crescente das línguas vernáculas na transmissão de conhecimentos práticos, num período em que o latim ainda dominava a produção escrita erudita. A sua redação ocorreu num contexto em que a literatura culinária europeia começava a ganhar forma, antecedendo obras importantes como o Viandier de Taillevent em França ou o Forme of Cury em Inglaterra.

A autoria do Sent Soví permanece um mistério que tem intrigado historiadores. Alguns estudiosos sugerem que o autor seria um cozinheiro profissional ao serviço da nobreza catalã ou do clero, dada a sofisticação de muitas receitas e o conhecimento detalhado de ingredientes e técnicas. O académico americano Rudolf Grewe, que em 1979 editou uma versão completa adaptada ao catalão antigo, propôs que o manuscrito poderia ter sido compilado num ambiente monástico, onde a tradição culinária era valorizada e preservada.

O nome “Sent Soví” também permanece enigmático. Não corresponde a nenhum santo conhecido do calendário cristão, o que levou alguns investigadores a propor que poderia ser uma corruptela de “Sant Savi” (Santo Sábio) ou mesmo uma referência a um local ou pessoa hoje esquecidos. Esta ambiguidade no título adiciona uma camada de mistério a um documento já por si fascinante.

O livro apresenta uma estrutura que revela uma abordagem sistemática à arte culinária. As suas duzentas receitas abrangem um amplo espectro de preparações, desde sopas e caldos a pratos de carne, peixe, ovos e vegetais, culminando com doces e conservas. Esta organização demonstra uma visão abrangente da alimentação, que considera tanto os aspectos nutricionais como os sensoriais.

Uma característica distintiva do manuscrito é a atenção dada às técnicas de preparação. O autor não se limita a listar ingredientes, mas explica meticulosamente os processos de cozedura, fritura, assadura e estufagem, bem como métodos de conservação de alimentos essenciais numa época sem refrigeração.

As receitas do Sent Soví evidenciam uma predileção por sabores complexos e contrastantes, típicos da gastronomia medieval. O uso abundante de especiarias como açafrão, canela, gengibre, pimenta-preta, cravinho e noz-moscada não servia apenas para realçar o sabor, mas também para demonstrar estatuto social, dado o elevado custo destes produtos importados. A combinação de doce e salgado, característica da cozinha medieval europeia, manifesta-se em pratos como o “broete de madama”, que mistura leite de amêndoa, caldo de galinha, pinhões, ovos, vinagre, gengibre, pimenta, galanga e açafrão, além de salsa, hortelã e orégãos.

O manuscrito revela também uma utilização criteriosa de ingredientes locais e importados. Produtos mediterrânicos como azeite, amêndoas, frutas frescas e secas coexistem com especiarias orientais, criando uma fusão gastronómica que reflete a posição da Catalunha como encruzilhada cultural.

A análise do Llibre de Sent Soví permite identificar três grandes correntes de influência que moldaram a cozinha catalã medieval: a romana, a islâmica e a cristã europeia. Esta confluência de tradições criou uma gastronomia única que, embora partilhando elementos com outras cozinhas mediterrânicas, desenvolveu características distintivas.

A herança romana manifesta-se no uso fundamental do azeite como gordura principal, na valorização de molhos elaborados e na importância dada ao vinagre como conservante e condimento. O garum romano, um molho fermentado de peixe, encontra ecos nas preparações de peixe salgado presentes no manuscrito. A técnica do sofrito – base aromática de muitos pratos mediterrânicos – também pode ser rastreada até práticas culinárias romanas.

A influência islâmica, resultante de séculos de presença muçulmana na Península Ibérica, é particularmente evidente no uso extensivo de especiarias, no aproveitamento de frutas em preparações salgadas e na elaboração de doces à base de amêndoas e mel. Técnicas de destilação e preparação de xaropes, introduzidas pelos árabes, aparecem em várias receitas do manuscrito. O uso de água de rosas, ingrediente emblemático da cozinha árabe, surge em diversas preparações doces e salgadas.

A tradição cristã europeia manifesta-se nas adaptações necessárias para cumprir os preceitos religiosos, como a abstinência de carne durante a Quaresma. O manuscrito inclui numerosas receitas de peixe e alternativas vegetarianas para estes períodos, demonstrando a importância do calendário litúrgico na organização da alimentação medieval. A receita “manjar blanco de pescado”, uma variação do popular “manjar branco” feito com galinha, exemplifica esta adaptação aos períodos de abstinência.

Um aspecto fascinante do Sent Soví é a documentação de receitas que utilizam massas, como os “fideos” (do árabe “fidaws”) e “aletria” (do árabe “itria”), evidenciando a introdução destes alimentos pelos árabes na Península Ibérica muito antes da popularização da pasta italiana na Europa.

O Llibre de Sent Soví oferece vislumbres valiosos sobre os aspectos materiais da cozinha medieval catalã, desde os utensílios utilizados até às técnicas de preparação e cozedura. O manuscrito menciona frequentemente o uso do almofariz (mortero em castelhano, morter em catalão), utensílio fundamental para a preparação de molhos, pastas e misturas de especiarias. A importância deste instrumento é tal que dá nome a uma preparação específica, o “morterol”, uma sopa cremosa elaborada com diferentes tipos de carne cozida em água, adicionada de gordura de porco e leite de amêndoa, tudo reduzido a uma pasta no almofariz.

As panelas de barro (cazuelas) aparecem como recipientes privilegiados para a cozedura lenta de guisados e estufados. O manuscrito descreve como enguias grelhadas ou assadas eram depois cozidas suavemente numa cazuela coberta com um rico molho de amêndoas, preparado no almofariz com açafrão, alho, miolo de pão torrado, amêndoas, sal marinho e um caldo de peixe.

O forno, herança da tradição romana aperfeiçoada durante o período islâmico, é mencionado para a preparação de pães, tortas e assados. A grelha e o espeto são utilizados para carnes e peixes, enquanto técnicas de fritura em azeite aparecem em diversas receitas, particularmente para peixes e fritos doces.

Uma característica distintiva da cozinha catalã medieval, evidenciada no Sent Soví, é a elaboração de molhos complexos, muitos dos quais recebem nomes específicos como “salsa fina” (uma mistura de gengibre, canela, pimenta-preta, cravinho, macis, noz-moscada e açafrão) ou “polvora duque” (uma combinação mais simples de canela, gengibre, cravinho e açúcar). Estas misturas de especiarias pré-preparadas funcionavam como bases aromáticas que podiam ser adicionadas a diversos pratos, demonstrando uma abordagem sistemática à construção de sabores.

A localização geográfica da Catalunha, entre o mar Mediterrâneo e os Pirenéus, proporcionou acesso a uma extraordinária diversidade de ingredientes, refletida nas receitas do Sent Soví. O manuscrito documenta uma seleção abrangente, embora algo caprichosa, de peixes frescos e salgados, excluindo espécies de águas mais profundas que exigiriam embarcações maiores para a sua captura. Esta limitação sugere um conhecimento prático das realidades da pesca mediterrânica, onde o mar pode tornar-se traiçoeiro, com ondas curtas e poderosas capazes de danificar as frágeis embarcações da época.

As enguias vivas, disponíveis nos mercados de Valência e ocasionalmente em Barcelona ou Tarragona, aparecem em várias receitas do manuscrito, apesar de seu sabor adquirido raramente ser apreciado em outras partes do país. Uma receita simples mas sofisticada descreve como preparar enguias com ingredientes populares na região, como açafrão, alho, miolo de pão torrado, amêndoas, sal marinho e um caldo de peixe.

A carne, particularmente de aves e caça, ocupa um lugar proeminente no manuscrito, refletindo as preferências alimentares da nobreza e do clero. Receitas elaboradas para perdizes, faisões, pombos e outras aves demonstram a importância da caça na alimentação das classes privilegiadas. A carne de cordeiro, cabrito e porco aparece em numerosas preparações, frequentemente combinada com frutas secas e especiarias.

Os vegetais, embora menos proeminentes que as proteínas animais, não estão ausentes do manuscrito. Abóboras, cardos, espinafres e outras verduras aparecem em receitas como “carabasses a la morisca” (abóbora à mourisca), preparada com abóbora, banha, leite de amêndoa, caldo de carne, queijo, gemas de ovo, coentro e “salsa fina”.

As frutas, tanto frescas como secas, desempenham um papel importante na cozinha catalã medieval. Maçãs, peras, marmelos, figos, tâmaras e uvas são utilizados tanto em preparações doces como salgadas, exemplificando a predileção medieval por combinações agridoces. As amêndoas, ingrediente fundamental na cozinha mediterrânica, aparecem em inúmeras receitas, principalmente na forma de leite de amêndoa, utilizado como base para molhos e como substituto do leite animal durante os períodos de abstinência.

O impacto do Llibre de Sent Soví estende-se muito além do seu contexto histórico imediato. Este manuscrito estabeleceu as bases da tradição culinária catalã que, ao contrário de outras regiões espanholas onde o conhecimento culinário foi transmitido principalmente por via oral, beneficiou de uma documentação escrita precoce e detalhada.

Muitas das técnicas e combinações de sabores documentadas no Sent Soví persistem na cozinha catalã contemporânea. O uso do almofariz para preparar molhos como o allioli (emulsão de alho e azeite) ou o romesco (molho à base de pimentos, amêndoas, alho e azeite) mantém-se como prática corrente. A técnica do sofrito, base aromática de inúmeros pratos, continua a ser fundamental na cozinha mediterrânica.

Algumas receitas específicas do manuscrito sobreviveram, embora com adaptações, até aos nossos dias. O “manjar branco”, originalmente uma preparação salgada que incluía peito de galinha, evoluiu para uma sobremesa conhecida como “mató de monja” ou “mató de Pedralba”, feita com leite de amêndoa, leite de vaca, casca de limão, canela, açúcar, água e um pouco de farinha de milho.

A influência do Sent Soví estendeu-se também a outros livros de culinária ibéricos. O Llibre de Coch de Rupert de Nola, publicado no século XVI, incorpora muitas receitas e técnicas do manuscrito medieval, adaptando-as aos gostos renascentistas. Esta continuidade demonstra como o Sent Soví estabeleceu um cânone culinário que seria elaborado e refinado por gerações subsequentes.

Na gastronomia contemporânea, o renovado interesse pela autenticidade e pelas raízes históricas da cozinha catalã tem levado chefs e investigadores a redescobrir o Sent Soví. Alguns restaurantes de alta cozinha em Barcelona e Girona têm reinterpretado receitas do manuscrito, utilizando técnicas modernas para recriar sabores medievais. Este diálogo entre passado e presente demonstra a vitalidade contínua de uma tradição culinária que, embora tenha evoluído, mantém ligações profundas com as suas origens medievais.

O Llibre de Sent Soví transcende o seu valor como simples receituário para se afirmar como um documento histórico de primeira importância. Através das suas páginas, podemos vislumbrar não apenas o que se comia na Catalunha medieval, mas também compreender as complexas redes de intercâmbio cultural que moldaram a identidade mediterrânica.

Este manuscrito revela como a cozinha catalã medieval funcionou como um cadinho onde tradições romanas, islâmicas e cristãs se fundiram para criar uma expressão culinária única. A sua influência perdurou através dos séculos, estabelecendo padrões e práticas que continuam a definir a gastronomia catalã contemporânea.

Ao estudar o Llibre de Sent Soví, não estamos apenas a examinar receitas antigas, mas a explorar um capítulo fundamental da história cultural mediterrânica. Neste manuscrito, a comida emerge não apenas como sustento, mas como expressão de identidade, estatuto e pertença cultural, oferecendo-nos uma janela privilegiada para compreender a sociedade que o produziu.

Literatura recomendada
Grewe, Rudolf. Llibre de Sent Soví, llibre de totes maneres de potages de menjar. Editado por Amadeu Soveranas e Juan Santanach. Barcelona: Editorial Barcino, 2009.
Luján, Néstor e Juan Perucho. El libro de la cocina española. Barcelona: Tusquets Editores, 2003.
Santanach, Joan. El “Llibre de Sent Soví” i altres receptaris medievals. Barcelona: Editorial Barcino, 2016.

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