O jejum e a abstinência na Igreja Católica

Mulher em posição de prece, em primeiro plano, em frente a vitral de igreja catolica, ao fundo várias pessoas de pé e na parede a gravura de um santo

O jejum e a abstinência, práticas profundamente enraizadas na tradição cristã, têm sido, ao longo dos séculos, expressões de penitência, devoção e disciplina espiritual. Estas práticas, comuns em várias religiões, assumem na Cristandade uma diversidade de formas e significados, variando entre atos individuais e preceitos litúrgicos coletivos. A sua origem remonta aos primórdios da Igreja, sendo atribuída, em parte, ao Papa Calisto I (217-222), que terá formalizado algumas das primeiras regras de jejum.

Na tradição cristã, o jejum não se limita à simples renúncia a alimentos. Pode também incluir a abstenção de outras atividades, como relações conjugais, embora o foco principal tenha sido, historicamente, a alimentação. Nos primeiros séculos, as comunidades monásticas adotaram práticas rigorosas, abstendo-se de carne e vinho, influenciadas por teorias médicas da Antiguidade, como as de Hipócrates e Galeno. Estes alimentos, considerados “quentes e húmidos”, eram vistos como estimulantes dos desejos carnais, o que justificava a sua exclusão. Contudo, estas restrições severas revelaram-se impraticáveis para a maioria dos fiéis e, com o tempo, foram sendo ajustadas.

Entre os séculos X e XI, a Igreja Católica começou a diferenciar as práticas de jejum entre monges e leigos, introduzindo maior flexibilidade. Nunca se exigiu um jejum absoluto, sem qualquer alimento ou bebida, mas sim restrições graduais. Surgiram dois conceitos principais: o “jejum”, mais rigoroso, e a “abstinência”, mais moderada. Durante os períodos de jejum, era proibido o consumo de carne de quadrúpedes e aves, bem como de produtos derivados, como leite e ovos. No entanto, alimentos como peixe, marisco, cereais e óleos vegetais eram permitidos, o que ajudava a mitigar as dificuldades impostas pelas restrições.

A proibição de lacticínios e ovos, em particular, teve um impacto significativo na dieta medieval, especialmente nas regiões do norte da Europa, onde a produção de azeite era inexistente. Para substituir a manteiga e a banha, importavam-se azeite e amêndoas do Mediterrâneo, enquanto as ovas de peixe substituíam os ovos de galinha. Frutas secas, como figos, passas e tâmaras, bem como nozes e avelãs, tornaram-se alternativas populares durante os períodos de jejum.

Além da Quaresma, o período de jejum mais longo e significativo do calendário litúrgico, a Igreja instituiu os chamados Quatro Tempos, que marcavam o início de cada estação do ano. Estes períodos, fixos no calendário solar, refletiam uma ligação simbólica entre a fé e os ciclos da natureza. Durante os Quatro Tempos, os fiéis eram chamados a praticar a abstinência e a oração, reforçando a ideia de harmonia entre o homem, a criação e o divino.

As práticas de jejum variavam significativamente entre os leigos e os religiosos. Enquanto os leigos observavam jejuns mais leves, geralmente às quartas e sextas-feiras, os monges seguiam regras mais rigorosas, como as estabelecidas pela Regra de São Bento. Esta proibia o consumo de carne de quadrúpedes, mas permitia aves, ovos e laticínios, exceto em dias de jejum mais estrito. A Quaresma, com os seus 40 dias, era o período mais exigente, simbolizando os 40 anos de peregrinação dos hebreus no deserto e os 40 dias de jejum de Cristo.

A prática do jejum também foi influenciada por teorias médicas da época, como o sistema humoral de Hipócrates e Galeno, que associava as estações do ano a diferentes estados do corpo. O jejum, especialmente na primavera, era visto como uma forma de purificar o organismo após os excessos do inverno. Esta ligação entre saúde e espiritualidade reforçava a importância do jejum como uma prática não apenas religiosa, mas também de equilíbrio físico e mental.

Apesar da riqueza histórica e simbólica do jejum cristão, muitas questões permanecem sem resposta definitiva. Por que razão o peixe era permitido, enquanto outros alimentos de origem animal eram proibidos? Haveria motivações económicas por detrás da permissão de ovos e leite em certos períodos? E por que motivo a Quaresma, em particular, se tornou o período de jejum mais longo e significativo? Estas interrogações continuam a alimentar debates sobre a relação entre religião, cultura e sociedade, revelando a complexidade e a profundidade destas tradições.

Literatura recomendada
Bynum, Caroline Walker, Holy Feast and Holy Fast: The Religious Significance of Food to Medieval Women, University of California Press, 1987.
Fassman, David, Fasting: Spiritual Freedom Beyond Our Appetites, HarperOne, 2008.
Klein, Jacob, The Humoral Tradition in Western Medicine: Galen and the Four Humors, Routledge, 2017.

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