O “Doed-koek” e os rituais fúnebres


Quando os colonizadores holandeses se estabeleceram Nova Iorque no século XVII, trouxeram consigo não apenas as suas técnicas de construção, sistemas de comércio e práticas agrícolas, mas também os seus costumes funerários. Entre estas tradições, destacava-se o peculiar doed-koek, literalmente “bolo-morto”, um biscoito fúnebre que desempenhava um papel fundamental nos rituais de despedida. Marcados com as iniciais do falecido e distribuídos aos carregadores do caixão, estes bolos representavam uma ligação tangível entre o mundo dos vivos e o reino dos mortos, transformando o ato de comer num ritual de memória e transição.

O doed-koek não era apenas um alimento; era um símbolo carregado de significado. A prática de oferecer comida em contextos funerários tem raízes profundas em diversas culturas ao redor do mundo, mas a tradição holandesa desenvolveu características próprias. Estes biscoitos eram tipicamente preparados com especiarias como canela, noz-moscada e cravo, ingredientes que não só preservavam o alimento por mais tempo, mas também carregavam simbolismos associados à eternidade e à transcendência.

Ao consumir um alimento marcado com as iniciais do morto, os participantes do funeral participavam num ato de comunhão simbólica, incorporando literalmente a memória do falecido.

Que significado tinha este consumo ritual? Para os holandeses do século XVII, profundamente influenciados pelo calvinismo, o ato representava não apenas respeito pelo falecido, mas também uma aceitação da vontade divina. A sobriedade destes biscoitos – geralmente não muito doces e com textura firme – alinhava-se com a estética protestante que evitava excessos, mesmo em momentos de luto.

A elaboração do doed-koek seguia um protocolo rigoroso. Tradicionalmente, a responsabilidade recaía sobre as mulheres da família ou da comunidade, que iniciavam a preparação logo após a confirmação da morte. Os ingredientes básicos incluíam farinha, manteiga, açúcar (em quantidades moderadas) e as já mencionadas especiarias. A massa era trabalhada até atingir consistência firme, moldada em formas circulares ou retangulares, e depois marcada com as iniciais do falecido através de moldes de madeira especialmente talhados para a ocasião.

Além das marcações personalizadas, o doed-koek apresentava uma durabilidade superior, característica essencial numa época sem refrigeração. Esta longevidade não era acidental – simbolizava a permanência da memória do falecido. Alguns relatos históricos sugerem que certos participantes do funeral guardavam o seu biscoito como recordação, em vez de o consumir, transformando-o num objeto memorial.

Nas comunidades holandesas estabelecidas ao longo do rio Hudson, por exemplo, era comum adicionar sementes de cominho, enquanto nas áreas mais próximas de Manhattan (então Nova Amsterdão), a adição de frutas secas como passas era mais frequente.

Além das especiarias conservantes, os bolos eram frequentemente submetidos a uma segunda cozedura, resultando numa textura semelhante à de uma bolacha, o que reduzia significativamente o teor de humidade e prolongava a sua vida útil.

O costume do doed-koek não existia isoladamente, mas integrava-se numa rede mais ampla de práticas funerárias que envolviam alimentos. Uma tradição particularmente próxima, mencionada no dicionário de curiosidades culinárias de Mark Morton, é a do “comedor de pecados”, uma prática documentada principalmente nas Ilhas Britânicas. Neste ritual, uma pessoa era contratada para consumir simbolicamente os pecados do falecido: um pedaço de pão e queijo era colocado sobre o peito do cadáver, depois retirado e comido por este indivíduo designado, que supostamente absorvia as transgressões do morto.

Que relação existia entre estas duas tradições? Embora distintas, ambas partilhavam a premissa fundamental de que o alimento podia funcionar como um veículo de transferência espiritual. No entanto, enquanto o “comedor de pecados” era posteriormente expulso e apedrejado – reminiscência do bode expiatório bíblico – os portadores do doed-koek eram honrados pela sua participação no ritual.

Outras culturas europeias desenvolveram práticas semelhantes. Na Escandinávia, os bolos funerários conhecidos como gravöl eram distribuídos em velórios. Na Grécia, o koliva – uma mistura de trigo cozido, nozes e mel – continua a ser oferecido em memoriais. Estas tradições paralelas sugerem um impulso humano universal de utilizar a comida como mediadora entre os vivos e os mortos.

Estas práticas representam uma “gastronomia da morte” distinta, com códigos e convenções próprios. O que torna o doed-koek particularmente interessante é a sua posição na intersecção entre a austeridade protestante e a necessidade humana de ritual tangível.

Com o passar do tempo, a prática do doed-koek sofreu transformações significativas. À medida que as comunidades holandesas se integravam na sociedade americana mais ampla, muitos dos seus costumes distintivos foram gradualmente abandonados ou modificados. No final do século XIX, os bolos funerários tinham-se tornado mais elaborados e menos simbólicos, refletindo a tendência vitoriana para a ostentação nos rituais de morte.

Alguns historiadores sugerem que certas tradições de bolos comemorativos em comunidades do Vale do Hudson podem ter as suas raízes nesta prática holandesa. Além disso, o conceito de alimentos como veículos de memória permanece forte em muitas culturas – pensemos nos doces distribuídos em memoriais ou nas refeições partilhadas após funerais.

Nos Países Baixos modernos, embora o doed-koek original tenha desaparecido, persistem ecos desta tradição. Em algumas regiões, ainda se servem biscoitos especiais em funerais, agora chamados troostkoekjes (biscoitos de conforto). Estes já não levam as iniciais do falecido, mas mantêm a função social de proporcionar um foco tangível para a partilha de memórias.

Em comunidades holandesas-americanas contemporâneas, particularmente em áreas como Pella, Iowa, ou Holland, Michigan, onde a herança neerlandesa é celebrada ativamente, tem havido um interesse renovado em recuperar tradições alimentares históricas. Embora o doed-koek não tenha sido completamente revivido na sua forma original, elementos da panificação tradicional holandesa são frequentemente incorporados em eventos comunitários que honram os antepassados.

A prática também nos convida a reconsiderar a nossa relação contemporânea com a morte. Numa sociedade que frequentemente isola e medicaliza o processo de morrer, o doed-koek representa uma abordagem mais integrada, onde a morte é reconhecida como parte do ciclo da vida comunitária, e onde os alimentos servem como mediadores entre os vivos e os que partiram.

Quando examinamos tradições como o doed-koek, não estamos apenas a estudar curiosidades históricas, mas a explorar formas fundamentalmente humanas de dar sentido à perda e à continuidade. Através destes biscoitos simples, marcados com as iniciais de alguém que já não está presente, os holandeses do século XVII criaram um poderoso símbolo da permanência da memória – um legado que, de formas subtis e transformadas, continua a influenciar a nossa compreensão da relação entre alimentação, morte e lembrança.

Literatura recomendada
Earle, Alice Morse. Colonial Days in Old New York. Charles Scribner’s Sons, 1896.
Rose, Peter G. Food, Drink and Celebrations of the Hudson Valley Dutch. The History Press, 2009.
Van Gennep, Arnold. The Rites of Passage. University of Chicago Press, 1960.

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