
A decisão sobre o que comer parece, à primeira vista, uma questão simples e quotidiana. No entanto, esta aparente simplicidade esconde um complexo sistema de escolhas influenciadas por milhares de anos de evolução biológica e cultural. Como seres omnívoros, os humanos enfrentam diariamente o que o psicólogo Paul Rozin denominou “o dilema do omnívoro” – a tensão constante entre a necessidade de experimentar novos alimentos (neofilia) e o medo instintivo do desconhecido que pode ser tóxico (neofobia). Este dilema fundamental tem moldado não apenas os nossos padrões alimentares, mas também as nossas estruturas sociais, sistemas de classificação e regras culturais em torno da comida.
A evolução do omnívoro humano
A nossa condição de omnívoros não é apenas uma característica dietética, mas uma vantagem evolutiva que permitiu aos humanos adaptarem-se a diversos ambientes. Esta capacidade de consumir tanto alimentos de origem animal como vegetal conferiu aos nossos antepassados hominídeos uma flexibilidade nutricional extraordinária, facilitando a migração para novos territórios e a sobrevivência em condições variáveis.
A evolução para o bipedismo, há milhões de anos, teve implicações profundas nas nossas necessidades alimentares. Caminhar sobre duas pernas exige um gasto energético considerável, o que levou à necessidade de obter alimentos de alto valor calórico. Esta mudança anatómica está ligada ao desenvolvimento de estratégias de caça e recolha que proporcionavam acesso a proteínas e gorduras animais, embora os alimentos vegetais continuassem a constituir uma parte significativa da dieta.
O desenvolvimento do cérebro humano, notavelmente maior em proporção ao corpo quando comparado com outros primatas, também influenciou as nossas necessidades nutricionais. Foi provavelmente o domínio do fogo e o cozimento dos alimentos que permitiu aos humanos extrair mais calorias e nutrientes, sustentando o crescimento cerebral e reduzindo a necessidade de um sistema digestivo volumoso.
Mas como decidimos o que é comestível num mundo cheio de potenciais alimentos? Ao contrário de outros animais com dietas mais especializadas, os humanos não possuem instintos inatos que identifiquem com precisão quais as plantas ou animais são seguros para consumo. Esta incerteza fundamental constitui o cerne do dilema do omnívoro.
Entre a neofilia e a neofobia: o paradoxo das escolhas alimentares
A neofilia alimentar impulsiona-nos a procurar novos sabores e texturas, expandindo o repertório nutricional e aumentando as hipóteses de sobrevivência em ambientes diversos. Por outro lado, a neofobia funciona como um mecanismo de proteção, gerando hesitação perante alimentos desconhecidos que poderiam representar perigo.
Os nossos sentidos evoluíram para auxiliar neste processo de seleção. O paladar, particularmente, desenvolveu-se para detetar cinco sabores fundamentais: doce (indicando calorias), salgado (minerais essenciais), ácido (frescura ou maturação), amargo (potenciais toxinas) e umami (proteínas). Esta capacidade sensorial, combinada com o olfato, permite-nos avaliar a comestibilidade dos alimentos, embora de forma imperfeita.
Os humanos parecem ter uma predisposição inata para preferir sabores doces e texturas gordurosas, ambos associados a fontes de energia rápida, e para evitar sabores amargos, frequentemente presentes em plantas tóxicas. No entanto, estas preferências básicas são insuficientes para navegar no complexo universo alimentar.
A construção cultural da comestibilidade
Como resolvemos, então, o dilema do omnívoro? A resposta encontra-se na cultura – o sistema de conhecimentos, práticas e crenças transmitidas socialmente que complementa as nossas capacidades biológicas.
As classificações alimentares representam uma solução cultural para o dilema do omnívoro. Cada sociedade desenvolve sistemas elaborados para categorizar alimentos como comestíveis ou não comestíveis, puros ou impuros, saudáveis ou prejudiciais. Estas classificações não são arbitrárias, mas refletem a história, ecologia, religião e estrutura social de cada grupo.
Os tabus alimentares, presentes em praticamente todas as culturas, funcionam como regras que restringem o consumo de certos alimentos. Estas proibições podem ter fundamentos religiosos, como as leis kosher no judaísmo ou halal no islão, ou basearem-se em considerações de saúde, estatuto social ou identidade cultural. Longe de serem meras superstições, os tabus alimentares frequentemente codificam sabedoria ecológica e nutricional acumulada ao longo de gerações.
Os sistemas de classificação humoral, como o Ayurveda indiano ou a medicina tradicional chinesa, oferecem outro exemplo de como as culturas organizam o conhecimento sobre alimentos. Nestas tradições, os alimentos são categorizados segundo propriedades como “quente” ou “frio”, “seco” ou “húmido”, criando um sistema complexo que orienta as escolhas alimentares de acordo com as necessidades individuais e sazonais.
Na era moderna, as classificações nutricionais científicas introduziram novas categorias como proteínas, hidratos de carbono, vitaminas e minerais. Estas categorias, embora baseadas em conhecimento científico, também funcionam como sistemas culturais que influenciam profundamente as nossas escolhas alimentares.
A transmissão do conhecimento culinário
A transmissão do conhecimento sobre o que comer e como preparar os alimentos constitui um aspeto fundamental da cultura humana. Tradicionalmente, este conhecimento passava de geração em geração através da observação e participação nas atividades culinárias domésticas.
As receitas, sejam transmitidas oralmente ou documentadas em livros de culinária, representam repositórios de sabedoria cultural sobre alimentos. Elas codificam não apenas técnicas de preparação, mas também valores estéticos, normas sociais e identidades culturais. A codificação escrita das tradições culinárias frequentemente coincide com a formação de identidades nacionais e distinções de classe.
A cozinha, enquanto sistema cultural, resolve o dilema do omnívoro ao estabelecer padrões reconhecíveis de ingredientes, técnicas e sabores. Cada tradição culinária representa uma solução culturalmente específica para o problema universal de decidir o que comer, transformando ingredientes potencialmente perigosos em alimentos seguros e apetecíveis.
No contexto contemporâneo, enfrentamos uma transformação radical na forma como o conhecimento culinário é transmitido. A industrialização da produção alimentar e a globalização das cadeias de abastecimento grafaram o termo “gastro-anomia” – uma condição de incerteza alimentar resultante do enfraquecimento das tradições culinárias locais e da proliferação de mensagens contraditórias sobre alimentação.
Esta condição manifesta-se na ansiedade alimentar contemporânea, visível nas dietas da moda, nas preocupações com alergias e intolerâncias, e na busca por alimentos “naturais”, “orgânicos” ou “tradicionais”. Paradoxalmente, quanto mais opções alimentares temos disponíveis, mais ansiosos nos tornamos sobre o que comer.
O dilema contemporâneo: entre o global e o local
O sistema alimentar globalizado apresenta um novo dilema para o omnívoro moderno. Por um lado, temos acesso a uma diversidade sem precedentes de ingredientes e tradições culinárias de todo o mundo. Por outro, a distância entre produção e consumo gera ansiedade sobre a origem, segurança e autenticidade dos alimentos.
As respostas a este dilema contemporâneo são variadas. Movimentos como o Slow Food, a agricultura apoiada pela comunidade e os mercados de agricultores representam tentativas de reestabelecer ligações mais diretas com os alimentos e seus produtores. A crescente popularidade de dietas baseadas em tradições ancestrais, como a dieta paleolítica, pode ser interpretada como uma busca por orientação alimentar num mundo de escolhas excessivas.
Estas tendências sugerem que, mesmo numa era de abundância alimentar sem precedentes, continuamos a procurar soluções culturais para o dilema fundamental do omnívoro. A diferença é que agora podemos escolher conscientemente entre múltiplos sistemas de classificação e regras alimentares, desde tradições culinárias étnicas até recomendações nutricionais científicas ou filosofias alimentares éticas.
O que comemos continua a definir quem somos, tanto biológica quanto culturalmente. As nossas escolhas alimentares não são apenas questões de gosto ou nutrição, mas expressões de identidade, pertença e valores. Num mundo de opções aparentemente infinitas, o dilema do omnívoro persiste, lembrando-nos que a comida nunca é “apenas comida” – é um complexo fenómeno biocultural que nos liga simultaneamente à nossa história evolutiva e ao nosso contexto social contemporâneo.