
Na Paris do século XIX, os restaurantes de luxo não eram apenas locais para refeições sumptuosas, mas verdadeiros teatros sociais onde a burguesia e a aristocracia encenavam rituais de poder, sedução e status. Entre estes estabelecimentos, o Café Anglais destacou-se como um dos mais prestigiados, frequentado por figuras proeminentes da sociedade e da literatura, incluindo Gustave Flaubert. Como poderia um simples espaço gastronómico influenciar tão profundamente a obra de um dos maiores romancistas franceses? A resposta encontra-se na extraordinária capacidade de Flaubert para transformar a experiência sensorial da refeição em matéria literária, utilizando o ambiente dos restaurantes parisienses como microcosmos da sociedade francesa do Segundo Império.
A Paris gastronómica do século XIX
A capital francesa consolidou-se, durante o século XIX, como o epicentro mundial da gastronomia refinada. Os boulevards parisienses, remodelados sob a direção do Barão Haussmann, tornaram-se o palco privilegiado para o desenvolvimento de uma cultura gastronómica sem precedentes. Estabelecimentos como o Café Anglais, La Maison Dorée, Café Riche e Café de la Paix transformaram-se em instituições emblemáticas que definiam o gosto e os costumes da época.
O Café Anglais, situado na rue Royale, representava o auge desta cultura. Fundado em 1802, o restaurante atingiu o seu apogeu durante o Segundo Império (1852-1870), precisamente quando Flaubert desenvolvia a sua carreira literária. O estabelecimento era conhecido pelos seus salões privados luxuosos, especialmente o famoso “Grand Seize” (Grande Dezasseis), onde a elite parisiense podia desfrutar de refeições elaboradas longe dos olhares indiscretos.
“A confusão, opacidade e redundância dos nomes dos pratos era tal que, em meados do século XIX, tornou-se quase impossível para os não iniciados saberem o que estavam a encomendar sem uma explicação detalhada”, observa David Downie no seu estudo sobre a história gastronómica parisiense. Esta complexidade linguística da alta cozinha francesa criava um código social que separava os conhecedores dos neófitos, um aspeto que Flaubert explorou magistralmente na sua obra.
Flaubert e a mesa como cenário literário
A relação de Flaubert com a gastronomia parisiense era ambivalente. Por um lado, como normando abastado e frequentador dos círculos literários da capital, apreciava a boa mesa. Por outro, o seu olhar crítico permitia-lhe descodificar os rituais gastronómicos como manifestações da vaidade e superficialidade burguesas que tanto desprezava.
Em “A Educação Sentimental” (1869), o seu romance mais parisiense, Flaubert utiliza o Café Anglais como cenário para uma cena inesquecível. O protagonista Frédéric Moreau, cada vez mais envolvido nos círculos mundanos da capital, janta no luxuoso salão privado do restaurante com Rosanette, uma cortesã conhecida como “a Marechala”. A descrição da cena é um exemplo perfeito da técnica flaubertiana, combinando observação minuciosa com ironia subtil.
A escolha dos pratos por Rosanette revela tanto o seu caráter quanto a natureza do ambiente social: “Ela foi tentada pelo turbante de coelhos à Richelieu, pudim à d’Orléans e robalo à Chambord, mas acabou por pedir um simples filete de vaca, lagostins, trufas, uma salada de ananás e gelados de baunilha”. A simplicidade final da escolha, após a hesitação entre pratos com nomes pomposos, ilustra a tensão entre ostentação e autenticidade que percorre todo o romance.
Mais significativa ainda é a descrição sensual de Rosanette a comer: “Ela mordiscava uma romã, com o cotovelo apoiado na mesa. As velas do candelabro à sua frente tremulavam ao vento. A luz branca penetrava na sua pele com tons de madrepérola, dava um tom rosado às suas pálpebras e fazia brilhar os seus olhos. A cor vermelha do fruto misturava-se com o púrpura dos seus lábios; as suas narinas finas dilatavam-se; e havia nela um ar de insolência, embriaguez e desenvoltura que exasperava Frédéric e, no entanto, enchia o seu coração de desejos selvagens”.
Nesta passagem, a comida torna-se um elemento erótico, um prelúdio à sedução. O restaurante de luxo funciona como um espaço liminar onde as convenções sociais são simultaneamente reforçadas e subvertidas. A mesa do Café Anglais transforma-se num palco onde se desenrola o drama das relações humanas, das ambições sociais e dos desejos reprimidos.
A crítica social através da gastronomia
Para além da dimensão sensual, Flaubert utiliza as cenas de refeição como instrumentos de crítica social. Os restaurantes de luxo parisienses representavam o triunfo da burguesia financeira e industrial. A ostentação gastronómica era uma forma de afirmação social para esta classe emergente, ansiosa por imitar os códigos aristocráticos.
Em “Madame Bovary” (1857), o banquete de casamento de Emma e Charles Bovary serve como contraponto provincial às sofisticadas refeições parisienses. A descrição detalhada dos pratos rústicos e da disposição desajeitada dos convivas estabelece imediatamente o ambiente provinciano que Emma tanto desprezará. O seu desejo de escapar para o mundo elegante de Paris, alimentado pelos romances que lê, inclui implicitamente a aspiração a frequentar estabelecimentos como o Café Anglais.
A ironia de Flaubert manifesta-se na forma como retrata a nomenclatura elaborada dos pratos da alta cozinha francesa. Os “nomes fantásticos” que tanto impressionam personagens como Rosanette são apresentados como uma linguagem vazia, um código social sem substância real. Esta crítica à linguagem gastronómica reflete a preocupação mais ampla de Flaubert com a degradação da linguagem na sociedade burguesa, tema que explorou extensivamente no seu “Dicionário de Ideias Feitas”.
Eugène Briffault, contemporâneo de Flaubert, observou que “para se sentir verdadeiramente à vontade nos restaurantes de Paris, é preciso compreender a linguagem dos empregados: o seu francês de cozinha muitas vezes soa sarcástico ou insultuoso”. Esta opacidade linguística criava uma barreira social que Flaubert explorou como metáfora da superficialidade da sociedade parisiense.
A herança gastronómica na literatura francesa
A influência do Café Anglais e de outros restaurantes parisienses na obra de Flaubert insere-se numa tradição literária mais ampla. Desde Honoré de Balzac, que enviou o seu personagem Lucien de Rubempré para jantar na Maison Dorée, até Marcel Proust, cujo herói Swann frequentava o mesmo estabelecimento, os grandes romancistas franceses reconheceram o potencial narrativo dos espaços gastronómicos.
O que distingue a abordagem de Flaubert é a sua precisão clínica na descrição dos ambientes e comportamentos, combinada com uma profunda compreensão da psicologia das personagens. Enquanto Balzac utilizava os restaurantes principalmente como símbolos de ascensão ou queda social, Flaubert interessava-se mais pela forma como estes espaços revelavam as contradições internas das suas personagens.
A tradição iniciada por Flaubert de utilizar cenas de refeição como momentos-chave na narrativa continua a influenciar a literatura contemporânea. Autores como Michel Houellebecq exploram a gastronomia como um indicador do estado da sociedade, embora num contexto muito diferente, marcado pela globalização e pela perda das tradições culinárias.
A ligação entre gastronomia e literatura que Flaubert ajudou a estabelecer permanece vital na cultura francesa. Os restaurantes parisienses continuam a ser espaços onde se cruzam as dimensões sensorial, social e intelectual da experiência humana, tal como o eram no século XIX. A diferença é que, graças a escritores como Flaubert, aprendemos a ler estes espaços não apenas como locais de consumo, mas como textos culturais complexos.

