
O marzipan, esse doce de amêndoas e açúcar que hoje adorna mesas festivas e vitrines de confeitarias de luxo, percorreu um caminho singular na história da alimentação europeia. A sua origem, contudo, não está na culinária, mas sim no comércio: o termo designava originalmente uma unidade de medida utilizada no Chipre e na Arménia, derivada do árabe “marzaban”. Como tantos outros termos comerciais que migraram para o vocabulário culinário, o marzipan ilustra a profunda ligação entre rotas comerciais, intercâmbios culturais e transformações gastronómicas que caracterizaram a Europa pré-moderna.
A origem etimológica: da medida ao recipiente
O termo “marzapane”, do árabe “marzaban”, funcionava inicialmente como uma unidade de medida, sendo um submúltiplo do “modius”. Este fenómeno de transferência linguística não é incomum na história dos alimentos – tal como aconteceu com ânforas, jarros e barris, a unidade de medida acabou por emprestar o seu nome à embalagem, ao recipiente que, pelo menos nas suas origens, era calibrado de acordo com a própria medida.
Consistia numa caixa leve de madeira, fabricada com material semelhante ao utilizado para peneiras. A sua forma era oval e possuía uma tampa feita da mesma madeira. Estas caixas eram utilizadas para enviar doces feitos com farinha, pasta de amêndoa e outros ingredientes para Chipre. Dado que estes doces assumiam a forma da caixa e se assemelhavam a pão, o nome da embalagem foi rapidamente transferido para o conteúdo, que passou a ser chamado “marzapane”, ou marzipan.
Esta transferência semântica está documentada já no século XIV, quando Balducci Pegolotti, compilador de um guia comercial, procurou distinguir a caixa do seu conteúdo, referindo-se ao “peso e custo da caixa de madeira na qual se coloca o marzipan quando está fresco”. Algumas linhas depois, especificava: “[é] apenas para a madeira, sem o marzipan comestível”.
Curiosamente, as caixas continuaram a ser chamadas “marzapani” e eram utilizadas para armazenar correspondência e documentos importantes, originando a expressão “aprire i marzapani” (abrir o marzipan), no sentido de revelar segredos potencialmente embaraçosos.
A receita medieval: técnica e ingredientes
Uma receita de marzipan do final do século XV, reproduzida no documento histórico analisado, revela não apenas os ingredientes, mas também técnicas sofisticadas de preparação que demonstram o cuidado e a precisão envolvidos na sua confecção:
“Descasque as amêndoas completamente. Esmague-as com um pilão tanto quanto possível para que não tenham de ser passadas pelo moinho. Para tornar estas amêndoas mais brancas, saborosas e doces ao paladar, amoleça-as em água fria durante um dia e uma noite ou mais. E esmague-as juntamente com um pouco de água de rosas para que não fiquem oleosas.”
A receita prossegue com instruções precisas sobre as proporções: “E se quiser fazer as referidas tortas boas, coloque nelas medidas iguais de açúcar e de amêndoas moídas, ou seja, uma libra de um e de outro, ou mais ou menos conforme desejar, e coloque mais uma ou duas onças de boa água de rosas, e misture tudo isto completamente.”
O método de cozedura também é detalhado: “Depois, pegue nos cornetos de açúcar e banhe primeiro com água de rosas; espalhe no fundo da frigideira e coloque neles a mistura. Ponha a cozer num forno ou sobre um fogo como outras tortas, tendo o cuidado de usar uma chama suave e de verificar frequentemente, para que não queime. Lembre-se que as tortas de marzipan devem ser leves e pequenas, não espessas e pesadas.”
Esta receita revela não apenas os ingredientes básicos – amêndoas, açúcar e água de rosas – mas também preocupações com a textura, aparência e qualidade do produto final que são surpreendentemente modernas.
O marzipan como símbolo de intercâmbio cultural
Este doce exemplifica perfeitamente como os produtos e termos importados de outras culturas transformaram a gastronomia europeia. Como muitos outros alimentos de luxo, o marzipan não era apenas um doce, mas um símbolo de estatuto social e refinamento. A água de rosas, ingrediente essencial na receita tradicional, era também um produto importado, valorizado não apenas pelo seu aroma, mas pelas suas supostas propriedades medicinais.
Os comerciantes trocavam mais do que bens e dinheiro: também trocavam ideias e, sobretudo, experimentavam tendências, hábitos e costumes recíprocos, incluindo formas de cozinhar”. Vivendo longe das suas terras natais durante anos a fio, levavam consigo servos e cozinheiros que, ao regressarem a casa, tinham aprendido muitas coisas novas. Alguns até permaneciam na cidade anfitriã para praticar a sua arte.
Esta circulação de pessoas, produtos e conhecimentos contribuiu para a disseminação de preparações como o marzipan por toda a Europa, adaptando-se aos gostos e disponibilidades locais, mas mantendo sempre o seu estatuto de iguaria de luxo.
Do medieval ao contemporâneo: evolução e permanência
O marzipan sobreviveu à passagem dos séculos, adaptando-se a diferentes contextos culturais e culinários. Que características permitiram a esta preparação medieval manter a sua relevância até aos dias de hoje?
Em primeiro lugar, a sua versatilidade. O marzipan pode ser consumido como doce por si só, mas também serve como base para confecções mais elaboradas ou como elemento decorativo em bolos e outras sobremesas. Esta adaptabilidade permitiu-lhe encontrar o seu lugar em diferentes tradições culinárias.
Em segundo lugar, a sua associação com ocasiões festivas. Em muitos países europeus, o marzipan tornou-se parte integrante das celebrações natalícias, pascais ou de outras festividades importantes. Esta ligação ao calendário festivo garantiu a sua transmissão de geração em geração.
Por último, a sua qualidade de produto de luxo. Apesar da democratização do acesso ao açúcar e às amêndoas, o marzipan manteve o seu estatuto de doce especial, associado a momentos de celebração e indulgência.
Hoje, o marzipan continua a ser produzido tanto industrialmente como de forma artesanal, com variações regionais significativas. Em Toledo, Espanha, o mazapán é tradicionalmente moldado em formas elaboradas; em Lübeck, Alemanha, o Lübecker Marzipan é reconhecido pela sua qualidade superior; em Itália, a pasta reale da Sicília mantém-se fiel às receitas antigas.
A história do marzipan é, assim, um exemplo perfeito de como um produto pode transcender a sua função original – neste caso, uma simples unidade de medida – para se tornar um elemento significativo do património gastronómico europeu, carregado de história, simbolismo e tradição.
A próxima vez que saborear um doce de marzipan, lembre-se: está a degustar não apenas uma combinação de amêndoas e açúcar, mas séculos de história comercial, cultural e gastronómica europeia, condensados numa pequena e doce iguaria.