As pipocas como experiência cinematográfica


A relação entre o cinema e as pipocas transcende a simples coincidência comercial. Resulta de um fenómeno cultural que moldou a forma como experienciamos a sétima arte, criando um ritual tão enraizado que se torna quase impossível imaginar uma sala de cinema sem o aroma característico deste alimento. A história desta ligação mostra não apenas estratégias económicas, mas também transformações sociais e culturais que acompanharam a evolução do entretenimento moderno.

As pipocas, contrariamente ao que muitos possam pensar, não nasceram com o cinema. Este alimento tem uma história milenar, com origens que remontam a civilizações antigas no Peru e no Novo México. No entanto, a sua integração na experiência cinematográfica começou apenas no início do século XX, mais precisamente em 1912, quando os primeiros vendedores de pipocas começaram a aparecer nas proximidades das salas de cinema.

Inicialmente, os proprietários dos cinemas resistiram à ideia de permitir alimentos nas suas elegantes salas. Os primeiros cinemas, conhecidos como “palácios de cinema”, eram espaços luxuosos que procuravam atrair uma clientela de classe média-alta. A ideia de espetadores a mastigar ruidosamente e a deixar resíduos nos tapetes caros era vista com desagrado. Como resultado, os vendedores ambulantes de pipocas estabeleceram-se estrategicamente nas entradas dos cinemas, vendendo o seu produto aos espetadores antes de entrarem nas salas.

A Grande Depressão de 1929 alterou drasticamente este panorama. Com a economia em colapso, tanto os proprietários de cinemas como os produtores de milho enfrentavam dificuldades financeiras. As pipocas, sendo um alimento barato de produzir e vender, tornou-se uma solução económica para ambas as partes. Os cinemas começaram a instalar máquinas de pipocas nos seus átrios, descobrindo rapidamente que os lucros provenientes da venda deste alimento superavam frequentemente os da bilheteira.

A Segunda Guerra Mundial consolidou ainda mais esta relação. Com o açúcar a ser enviado para as tropas americanas no estrangeiro, a produção de doces diminuiu drasticamente. Os americanos, privados dos seus habituais doces, triplicaram o consumo de pipocas durante este período. Este aumento no consumo estabeleceu definitivamente as pipocas como o alimento preferido dos cinéfilos.

A década de 1950 trouxe um novo desafio para a relação entre cinema e as pipocas. Com a popularização da televisão, a frequência das salas de cinema diminuiu consideravelmente e, consequentemente, também o consumo das pipocas nestes espaços. No entanto, este aparente revés acabou por se transformar numa oportunidade de expansão.

À medida que as famílias se reuniam em frente aos televisores nas suas salas de estar, as pipocas encontraram um novo habitat. O público começou a consumir pipocas em casa enquanto assistia a programas televisivos, criando uma nova dinâmica de consumo. A versatilidade deste alimento e a sua capacidade de transcender o espaço físico do cinema para se estabelecer como um elemento fundamental da experiência de entretenimento em geral, é notável.

Com a evolução do mercado cinematográfico, surgiu uma estratificação nas ofertas alimentares disponíveis nos diferentes tipos de cinema. Os proprietários dos cinemas decidem que certos tipos de público apreciam certos tipos de filmes em certos tipos de locais. Eles também presumem saber que tipos de snacks cada tipo particular de público prefere.

Esta segmentação é particularmente evidente quando comparamos os cinemas alternativos ou “art house” com os multiplexes convencionais. Nos primeiros, tradicionalmente frequentados por um público mais intelectual, a oferta gastronómica tendia a ser mais sofisticada: café latte, sumo de laranja, bolo de cenoura e alfarroba em vez de chocolate. No entanto, com o tempo, mesmo estes espaços acabaram por incorporar as pipocas no seu menu, reconhecendo o seu estatuto como elemento fundamental da experiência cinematográfica.

Por outro lado, os drive-ins e os cinemas independentes oferecem uma variedade mais ampla de opções, desde hambúrgueres e batatas fritas até refeições completas e bebidas alcoólicas. Esta diversidade reflete não apenas diferentes preferências de consumo, mas também diferentes formas de experienciar o cinema.

Para além dos aspectos económicos e sensoriais, existe uma dimensão psicológica na relação entre cinema e pipoca que merece atenção. Nós, como público, comemos e bebemos enquanto assistimos a filmes porque isso nos relaxa. Acalma os nossos corpos e tranquiliza a nossa mente. Coloca-nos num estado quase tranquilo, permitindo que o drama do grande ecrã nos envolva completamente.

Este efeito calmante pode ser explicado pela ação repetitiva e quase mecânica de levar a pipoca à boca, criando um ritmo que ajuda a regular a ansiedade e a aumentar a concentração no filme. Além disso, o ato de partilhar pipocas numa sala de cinema cria um sentido de comunidade e experiência partilhada, mesmo entre estranhos.

Nas últimas décadas, a oferta de pipoca nos cinemas diversificou-se consideravelmente. Da simples pipocas com sal, passámos para uma variedade de sabores e combinações: pipocas caramelizadas, com manteiga, com chocolate, com queijo e muitas outras variantes. Esta evolução reflete uma tendência mais ampla na indústria alimentar para a personalização e a experiência gastronómica como forma de diferenciação.

Paralelamente, o mercado de pipocas para consumo doméstico expandiu-se significativamente. As pipocas de microondas, introduzidas na década de 1980, revolucionou a forma como consumimos este alimento em casa, tornando-o ainda mais acessível e conveniente. Produtos como o “Crackerjack” nos Estados Unidos, uma mistura de pipoca caramelizada com amendoim, ou o “Lolly Golly Bliss Bombs” na Austrália, demonstram a versatilidade deste alimento e a sua capacidade de adaptação a diferentes contextos culturais.

Apesar da sua ubiquidade, a relação entre cinema e pipoca não está isenta de contradições. Como refere F. White, mastigar a omnipresente pipoca enquanto aqueles no ecrã estão a jantar Chateaubriand é como assistir a ‘E Tudo o Vento Levou’ a preto e branco, ou ‘Tubarão 3D’ sem os óculos.

Esta observação levanta questões sobre a autenticidade da experiência cinematográfica e a possibilidade de uma imersão mais completa. White sugere que comer o mesmo alimento que os personagens no ecrã poderia proporcionar uma ligação mais íntima com o filme, uma forma de “consumir o próprio filme” através dos olhos, ouvidos e paladar.

Esta ideia inspirou a autora a experimentar diferentes abordagens à relação entre cinema e comida. Num exemplo particularmente ilustrativo, ela descreve como ela e os amigos decidiram ter um “dia Robin Hood”, preparando um banquete semelhante ao apresentado no filme “As Aventuras de Robin Hood” (1938): “No nosso menu, preparámos cordeiro assado, pedaços de frango assado e comprámos um enorme garrafão de sidra de maçã muito forte.”

Do ponto de vista económico, a venda de pipocas nos cinemas representa um caso de estudo fascinante. Os proprietários de cinemas compram os grãos de milho a granel por um preço relativamente baixo e vendem a pipoca com margens de lucro extraordinárias, frequentemente superiores a 1000%. Este modelo de negócio é tão lucrativo que muitos cinemas consideram a venda de bilhetes apenas como uma forma de atrair clientes para a compra de alimentos e bebidas.

Este modelo estende-se para além das pipocas, incluindo bebidas e merchandising relacionado com os filmes. Os copos comemorativos, por exemplo, são vendidos a preços premium, apesar de conterem a mesma bebida gaseificada. Esta estratégia de marketing demonstra como a experiência cinematográfica se tornou inseparável do consumo alimentar.

Para além dos aspectos económicos e sensoriais, as pipocas no cinema adquiriram uma dimensão cultural significativa. A frase “Compra os bilhetes e eu vou buscar a pipoca!” tornou-se um ritual familiar para milhões de pessoas em todo o mundo. Este ritual transcende gerações e fronteiras culturais, criando uma experiência partilhada que contribui para a magia do cinema.

As pipocas tornaram-se tão intrinsecamente ligadas à experiência cinematográfica que a sua ausência seria notada e sentida como uma quebra na tradição.

À medida que a indústria cinematográfica enfrenta novos desafios, particularmente com a ascensão das plataformas de streaming, a relação entre o cinema e a pipoca continua a evoluir. Os serviços de streaming reconhecem a importância desta ligação e frequentemente incorporam referências à pipoca nas suas campanhas de marketing, tentando recriar a experiência cinematográfica em casa.

Paralelamente, os cinemas tradicionais procuram diferenciar-se oferecendo experiências gastronómicas cada vez mais sofisticadas. Alguns cinemas premium agora oferecem refeições completas servidas diretamente nos lugares, enquanto outros incorporam bares e restaurantes nos seus espaços. Estas inovações refletem uma compreensão da importância da experiência alimentar na decisão de ir ao cinema.

A relação entre cinema e as pipocas representam um fenómeno cultural que transcende a simples conveniência ou estratégia comercial. Esta união, forjada através de circunstâncias históricas, económicas e psicológicas, transformou a forma como experienciamos o cinema e estabeleceu um ritual que continua a definir a cultura cinematográfica contemporânea.

Talvez o verdadeiro poder desta relação resida na sua capacidade de criar uma experiência multissensorial que envolve não apenas os olhos e os ouvidos, mas também o paladar, o olfato e o tato. Neste sentido, as pipocas não são apenas um acompanhamento para o filme, mas uma parte integral da experiência cinematográfica, contribuindo para a imersão e o prazer que derivamos da sétima arte.

A próxima vez que entrar numa sala de cinema e sentir o aroma característico das pipocas, lembre-se que está a participar num ritual com décadas de história, um ritual que transformou um simples alimento num símbolo cultural perene.

Literatura recomendada
White, F. (2019). Film Food and I. Austin Macauley Publishers Ltd.
Smith, A. F. (2013). Popped Culture: A Social History of Popcorn in America. University of South Carolina Press.
Segrave, K. (2009). Movie Theaters and Their Concessions: A History of American Refreshment Operations. McFarland & Company.

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