A separação dos sabores

expositor duplo estilizado com duas campanulas de vidro, que encerram comida variada, como croissants, bolos, e frutos vermelhos diversos

Durante séculos, a organização das refeições europeias refletiu não apenas as preferências alimentares, mas também as crenças médicas, culturais e sociais de cada época. A separação entre pratos doces e salgados, que hoje parece natural, foi, na verdade, o resultado de um longo processo de transformação culinária. Este fenómeno, que começou a ganhar forma no final da Idade Média e se consolidou ao longo dos séculos seguintes, revela muito sobre as mudanças nos hábitos alimentares e na forma como os europeus passaram a compreender o prazer e a funcionalidade da comida.

Na Idade Média, a distinção entre sabores doces e salgados era praticamente inexistente. Os pratos frequentemente combinavam ingredientes que hoje consideraríamos incompatíveis, como carnes temperadas com açúcar ou frutas secas, e sopas enriquecidas com mel ou especiarias doces. Esta prática não era fruto de um gosto arbitrário, mas sim de uma lógica dietética profundamente enraizada nas teorias médicas da época.

Os médicos medievais, influenciados pela tradição greco-romana, acreditavam que a saúde dependia do equilíbrio dos humores do corpo, e a comida desempenhava um papel crucial nesse equilíbrio. Os sabores eram classificados de acordo com as suas propriedades medicinais, e a combinação de doce e salgado era vista como uma forma de harmonizar os efeitos dos alimentos no organismo. Por exemplo, pratos que misturavam carne com frutas ou açúcar eram considerados benéficos para a digestão e para a regulação do calor interno.

Além disso, o açúcar, que na época era um produto raro e caro, era amplamente utilizado como tempero em pratos salgados, não apenas para realçar o sabor, mas também como símbolo de status social. A presença de açúcar na mesa indicava riqueza e sofisticação, e a sua utilização em pratos de carne ou peixe era uma forma de exibir poder e prestígio.

Com o advento do Renascimento, a Europa começou a questionar muitas das práticas herdadas da Idade Média, incluindo as tradições culinárias. A redescoberta dos textos clássicos e o crescente interesse pela ciência e pela estética influenciaram profundamente a forma como os alimentos eram preparados e apresentados.

Foi durante este período que começaram a surgir as primeiras tentativas de separar os sabores doces e salgados nas refeições. Esta mudança não foi imediata nem uniforme, mas refletiu uma transformação gradual na forma como os europeus entendiam o prazer gastronómico. A estética renascentista, que valorizava a ordem e a harmonia, começou a influenciar a disposição dos pratos na mesa. A ideia de que os sabores deveriam ser organizados de forma sequencial, em vez de misturados, ganhou força, especialmente entre as elites.

Um exemplo notável desta mudança pode ser encontrado nos banquetes renascentistas italianos, onde os pratos começaram a ser servidos em ordens específicas, com os sabores doces reservados para o final da refeição. Esta prática, que mais tarde se espalhou para outros países europeus, refletia não apenas uma preocupação estética, mas também uma nova abordagem à experiência sensorial. O doce passou a ser visto como um encerramento adequado para a refeição, uma forma de limpar o paladar e proporcionar uma sensação de satisfação.

No século XVII, a separação entre doce e salgado tornou-se mais evidente, especialmente em França, que começava a emergir como o centro da alta gastronomia europeia. Este período marcou o início de uma nova era na organização das refeições, com a introdução de regras mais rígidas sobre a sequência dos pratos e a separação dos sabores.

A influência da corte francesa, particularmente sob o reinado de Luís XIV, desempenhou um papel crucial nesta transformação. Os banquetes da corte eram cuidadosamente organizados, com uma atenção meticulosa à ordem e à apresentação dos pratos. O serviço à francesa, que se tornou o padrão na Europa, estabelecia uma sequência clara para as refeições, com os pratos salgados servidos primeiro, seguidos pelos doces.

Esta mudança também refletia uma evolução no uso do açúcar na cozinha. Enquanto no período medieval o açúcar era amplamente utilizado em pratos salgados, no século XVII começou a ser reservado quase exclusivamente para sobremesas e confeitaria. Esta transformação foi impulsionada, em parte, pela crescente disponibilidade de açúcar, que deixou de ser um luxo reservado às elites e se tornou mais acessível às classes médias.

Além disso, a separação entre doce e salgado foi reforçada por uma nova abordagem à saúde e à nutrição. Os médicos da época começaram a questionar as teorias dietéticas medievais e a defender uma maior simplicidade e clareza na organização das refeições. A ideia de que os sabores doces e salgados deveriam ser consumidos separadamente, para evitar confusões no estômago e facilitar a digestão, tornou-se amplamente aceita.

Embora a separação entre doce e salgado tenha sido amplamente adotada na Europa, as práticas variaram de país para país, refletindo diferenças culturais e regionais. Em Itália, por exemplo, os doces continuaram a desempenhar um papel importante no início das refeições, especialmente em banquetes festivos, enquanto na França a tendência era reservá-los para o final.

Na Espanha, a influência das tradições árabes, que valorizavam a combinação de sabores doces e salgados, permaneceu evidente durante mais tempo, especialmente na cozinha popular. No entanto, mesmo aqui, a separação começou a ganhar força, especialmente entre as classes altas, que procuravam imitar os padrões franceses.

A consolidação da separação entre doce e salgado também foi influenciada pela crescente profissionalização da cozinha europeia. Os chefs, que começaram a ganhar destaque como figuras importantes na sociedade, desempenharam um papel crucial na definição das regras e práticas culinárias. A publicação de livros de receitas e manuais de cozinha, como os de François Pierre de La Varenne e outros autores do século XVII, ajudou a codificar a separação entre os sabores e a estabelecer normas que se tornaram amplamente aceites.

Este processo de separação continuou a evoluir nos séculos seguintes, refletindo mudanças nos gostos, nas práticas sociais e nas influências culturais. Hoje, a distinção entre doce e salgado é uma característica fundamental da gastronomia europeia, mas a sua história revela um percurso complexo e multifacetado, marcado por transformações culturais, sociais e científicas.

Literatura recomendada
Albala, Ken. Food in Early Modern Europe. Greenwood Press, 2003.
La Varenne, François Pierre de. Le Cuisinier François. Chez Pierre David, 1651.
Strong, Roy. Feast: A History of Grand Eating. Harcourt, 2002.

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