
Em Berlim, Samuel Beckett costumava frequentar o restaurante Giraffe, um local discreto onde, segundo relatos, mantinha o hábito de refletir em silêncio enquanto observava o movimento ao seu redor. Certo dia, durante uma conversa, alguém lhe perguntou sobre a ausência de esperança na sua obra. Beckett, após um longo momento de contemplação, pegou uma migalha de pão que estava sobre a mesa. Observou-a atentamente, como se pesasse cada palavra que diria, e então, citando Dante, afirmou: “Escreveria sobre os portões do Céu o que se diz estar escrito sobre os do Inferno: ‘Abandonai toda a esperança, vós que entrais'”. Em seguida, deixou a migalha cair de volta à mesa e concluiu, com a serenidade de quem já havia refletido profundamente sobre o tema: “É o que penso da esperança”.
Essa história, verdadeira ou não, encapsula a essência da visão de mundo de Beckett. O dramaturgo irlandês, célebre por sua abordagem austera e desoladora da condição humana, via na esperança não uma virtude, mas uma ilusão. Para ele, a esperança era uma distração, um artifício que mascarava o absurdo da existência. Em sua obra, marcada por silêncios, repetições e a ausência de resoluções, a esperança não tinha lugar, pois representava uma negação da realidade crua e inevitável.
A citação de Dante, com a imagem imponente dos portões do Inferno, ganha um novo significado nas palavras de Beckett. Ao transferir a inscrição para os portões do Céu, ele subverte a ideia tradicional de salvação. Esse gesto não é apenas provocador, mas também profundamente simbólico: sugere que a verdadeira libertação não está em promessas de redenção, mas na aceitação plena da condição humana, sem recorrer a ilusões reconfortantes. Para Beckett, o Céu e o Inferno não eram lugares distintos, mas estados de consciência igualmente marcados pela ausência de sentido.
O gesto de pegar e largar a migalha de pão, aparentemente banal, carrega um peso simbólico que ecoa sua filosofia. A migalha, pequena e insignificante, torna-se uma metáfora para a fragilidade da existência e para a efemeridade da esperança. Ao deixá-la cair, Beckett parece rejeitar qualquer tentativa de atribuir significado ou valor a algo tão transitório. A migalha, ao tocar a mesa, torna-se um símbolo da renúncia: a recusa de acreditar em um futuro redentor ou em qualquer forma de consolo que desvie o olhar da realidade nua e crua.
Esse episódio, real ou imaginado, reflete a profundidade do pensamento beckettiano, onde cada gesto, cada palavra, carrega um peso existencial. A migalha, o silêncio, a citação de Dante – tudo se entrelaça para compor uma visão de mundo que rejeita as ilusões e encara o vazio com uma honestidade implacável.
