
A participação em refeições sacrificiais constituía um elemento fundamental da vida social e religiosa no mundo greco-romano do primeiro século. Para os cristãos primitivos em Corinto, a questão sobre se podiam ou não participar nestas refeições tornou-se um ponto de tensão significativo, como evidenciado na correspondência de Paulo. Quais as diferentes interpretações dadas por judeus e gentios convertidos ao cristianismo, nas implicações sociais, teológicas e culturais desta prática?
Contexto histórico-religioso da comensalidade sacrificial
No mundo greco-romano do primeiro século, as refeições não eram apenas momentos de nutrição, mas eventos sociais carregados de significado religioso e cultural. A arqueologia e as fontes literárias revelam que muitas refeições, especialmente aquelas de importância social, envolviam alimentos que tinham sido previamente oferecidos a divindades. O santuário de Deméter e Koré em Corinto oferece um exemplo particularmente relevante desta prática.
As escavações arqueológicas no santuário de Deméter e Koré na encosta do Acrocorinto revelaram aproximadamente 40 salas de refeição, indicando a centralidade da comensalidade no culto destas deusas. Estas salas, dispostas em torno de uma escadaria central, acomodavam geralmente oito ou nove comensais cada. A presença destas instalações para refeições, juntamente com evidências de sacrifícios de animais e oferendas de alimentos, demonstra claramente que as refeições cultuais eram parte integrante da adoração a estas divindades.
O culto a Deméter e Koré estava intimamente ligado à agricultura e à fertilidade. As festividades associadas a este culto marcavam momentos cruciais do ciclo agrícola: a Proêrosia na época da lavoura, a Tesmofória na semeadura, a Haloa no inverno quando as sementes pareciam mortas na terra, a Chloaia quando surgiam os primeiros brotos verdes e a Skira quando as sementes eram armazenadas. Nestas celebrações, o consumo de alimentos sagrados constituía um ato sacramental de agradecimento, obediência e comemoração às deusas.
A ambiguidade do termo daimonia: entre deuses e demónios
O termo “daimonia” utilizado por Paulo, apresentava uma ambiguidade significativa para os seus leitores. Para os judeus convertidos ao cristianismo, o termo carregava conotações negativas de “demónios”, seguindo a tradução da Septuaginta, onde daimonia era utilizado para traduzir termos hebraicos referentes a divindades pagãs ou espíritos malignos. Esta interpretação estava enraizada na tradição judaica que considerava as divindades pagãs como entidades malignas ou inexistentes.
Para os gentios convertidos em Corinto, contudo, o termo daimonia evocava um espectro mais amplo e frequentemente positivo de significados, próximo de “deuses” (theoi). Na literatura grega clássica, daimonion podia significar “deus” ou “um deus” (semelhante a daimon em Heródoto e Eurípides), “ser divino inferior” (em Xenofonte e Platão), ou “espírito” sem necessariamente uma conotação negativa.
Esta diferença de interpretação criava uma tensão fundamental na comunidade cristã de Corinto. Enquanto Paulo, com sua formação judaica, certamente entendia daimonia como entidades malignas, os coríntios gentílicos podiam compreender o termo simplesmente como uma referência geral às divindades. Esta ambiguidade linguística e cultural refletia-se nas diferentes atitudes em relação à participação em refeições que envolviam alimentos sacrificados.
Participação na mesa dos daimonia: implicações sociais e religiosas
A participação na “mesa dos daimonia” tinha implicações profundas tanto sociais quanto religiosas. Do ponto de vista social, recusar-se a participar em refeições que envolviam alimentos sacrificados significava excluir-se de grande parte da vida comunitária greco-romana. Estas refeições ocorriam em diversos contextos: festivais religiosos, casamentos, aniversários, ocasiões de agradecimento e visitas de amigos ou pessoas importantes.
As fontes literárias greco-romanas revelam que estas refeições não eram apenas eventos religiosos formais, mas ocasiões de convívio social onde a comida era abundante, o vinho fluía livremente e a convivialidade predominava. Ao mesmo tempo, os ritos realizados sobre os alimentos tinham significado autêntico: assim como as ocasiões exigiam uma alimentação animada, também exigiam um agradecimento genuíno aos deuses.
A recusa em participar destas refeições impunha limitações significativas ao comportamento social dos cristãos. Os cristãos não podiam deixar o mundo para evitar o contato com idólatras, mas eram obrigados a não compartilhar nenhuma mesa idólatra com eles. Evitar refeições com qualquer elemento ritual pagão exigia um distanciamento desconfortável não de estranhos, mas de familiares, amigos e associados.
Entre a liberdade e a fidelidade
A posição do apóstolo sobre a participação na “mesa dos daimonia” revela uma tensão entre a liberdade cristã e a fidelidade exclusiva a Cristo. Aborda esta questão com uma argumentação complexa que tem sido objeto de intenso debate académico.
Paulo afirma claramente que os daimonia são reais. Embora cite os slogans monoteístas dos coríntios e afirme que há um só Deus Pai e um só Senhor Jesus Cristo, esta afirmação é profundamente qualificada. Há um só Deus e um só Senhor “para nós”, enfatiza ele, mas para outros, muitos deuses e muitos senhores. Mesmo que Paulo não queira parecer dizer que a comida sacrificada aos ídolos ou os próprios ídolos são “alguma coisa”, ele acredita que as coisas que são oferecidas (ha thyousin) são oferecidas aos daimonia.
Paulo sustenta que comer em alguns contextos efetiva uma parceria (koinonia) com os daimonia. Baseia-se numa comparação extensa entre a ceia do Senhor, os sacrifícios de Israel e o consumo de alimentos sagrados para os daimonia. A analogia explícita entre o cálice dos daimonia e o cálice do Senhor, e a mesa dos daimonia e a mesa do Senhor, juntamente com a outra clara alusão à ceia do Senhor, deixa claro que Paulo está a pensar em comer que é conscientemente sagrado para os daimonia ou para o Senhor que honra.
Interpretações judaicas e gentílicas da comensalidade sacrificial
As interpretações judaicas e gentílicas da comensalidade sacrificial diferiam significativamente, refletindo tradições religiosas e culturais distintas. Para os judeus, a proibição de participar em refeições que envolviam alimentos sacrificados a ídolos estava profundamente enraizada na sua tradição religiosa. A Lei Mosaica proibia explicitamente a idolatria, e a literatura judaica do período do Segundo Templo ampliou esta proibição para incluir a participação em refeições associadas a cultos pagãos.
Flávio Josefo, em Contra Apionem, defende as práticas judaicas contra as acusações de misantropia, explicando que os judeus se abstêm de participar em refeições com gentios não por ódio, mas por fidelidade às suas tradições religiosas. Esta abstinência era um marcador importante da identidade judaica no mundo greco-romano.
Para os gentios convertidos ao cristianismo, a questão era mais complexa. Tendo crescido em culturas onde a participação em refeições sacrificiais era uma parte normal da vida social e religiosa, muitos encontravam dificuldade em abandonar completamente estas práticas. Alguns, como sugere Paulo, argumentavam com base no seu “conhecimento” (gnosis) que, uma vez que os ídolos não eram nada, os alimentos sacrificados a eles também não tinham significado especial.
Esta tensão entre interpretações judaicas e gentílicas da comensalidade sacrificial refletia-se na comunidade cristã de Corinto, onde Paulo tentava mediar entre diferentes perspetivas, reconhecendo tanto a liberdade cristã quanto a necessidade de fidelidade exclusiva a Cristo.
A mesa dos daimonia como fronteira comunitária
A questão da participação na “mesa dos daimonia” tornou-se uma fronteira importante para a definição da identidade cristã primitiva. A recusa em participar em refeições sacrificiais marcava os cristãos como distintos tanto da sociedade greco-romana quanto do judaísmo tradicional.
Fontes não-cristãs confirmam que a abstinência de alimentos sacrificados era uma característica distintiva dos cristãos primitivos. Plínio, o Jovem, na sua carta a Trajano sobre como lidar com os acusados de cristianismo, observa que após as suas perseguições, “as pessoas começaram a frequentar os templos que tinham sido quase inteiramente abandonados por muito tempo; os ritos sagrados que tinham sido permitidos cair em desuso estão sendo realizados novamente, e a carne das vítimas sacrificiais está à venda em toda parte, embora até recentemente dificilmente alguém pudesse ser encontrado para comprá-la”.
Celso, citado por Orígenes em Contra Celsum, critica os cristãos por se absterem de alimentos sacrificiais: “Se eles seguem um costume de seus pais quando se abstêm de vítimas sacrificiais particulares… Mas se, como dizem, se abstêm para evitar festejar com demónios, eu os felicito pela sua sabedoria, porque estão lentamente a entender que estão sempre a associar-se com demónios. Eles tomam cuidado para evitar isso apenas no momento em que veem uma vítima sendo sacrificada”.
Esta abstinência de alimentos sacrificados não apenas distinguia os cristãos dos seus vizinhos pagãos e os tornava marginalizados, mas também os tornava muito visíveis. Não é por acaso que as perseguições oficiais aos cristãos a partir de meados do terceiro século incluíam disposições para o consumo obrigatório de alimentos sacrificiais como teste de lealdade.
A mesa como espaço de definição identitária
Contrariamente à avaliação de muitos estudiosos modernos, que veem os alimentos sacrificados como uma curiosidade histórica de interesse apenas porque permitiu a Paulo desenvolver princípios religiosos e éticos, o problema dos alimentos sacrificados estava próximo do centro da fidelidade dos primeiros cristãos à sua fé. No contexto social de Paulo – tanto o uso de alimentos sacrificados no intercurso social greco-romano, quanto o uso de alimentos para definir os limites das comunidades judaicas – Paulo está alinhado com outros cristãos primitivos ao ver os alimentos sacrificados como uma ameaça à parceria (koinonia) com o seu Senhor.



