
Na obra de William Shakespeare, os banquetes funcionam como poderosos dispositivos dramáticos que transcendem sua função básica de alimentação para se tornarem palcos de crítica social, especialmente nas suas comédias que exploram a tensão entre nobreza e marginalidade. Através da justaposição de imagens associadas à nobreza (como cenas de banquetes) e à marginalidade (como a vida dos fora-da-lei), Shakespeare cria um espaço onde o público pode examinar instabilidades sociais e considerar o fora-da-lei reformado como uma potencial influência positiva na sociedade.
A linguagem alimentar como ferramenta de crítica
Shakespeare utiliza a linguagem alimentar e as cenas de banquete para estabelecer contrastes entre a vida na corte e a vida na floresta. Nas suas comédias, particularmente em “Os Dois Cavalheiros de Verona” e “Como Gostais”, o dramaturgo não apenas contrasta estes dois mundos, mas entrelaça-os de forma a revelar uma profunda ambivalência sobre a construção de identidades e a aceitação da mudança social.
Em “Os Dois Cavalheiros de Verona”, considerada uma das primeiras obras de Shakespeare, o autor ancora os desenvolvimentos da trama em duas referências a refeições. A primeira ocorre no Ato 2, quando Valentim evita um jantar na corte, revelando sua insegurança quanto à recepção que teria. Este momento estabelece a corte como um espaço de distinções sociais, intrigas e atividades eticamente ambíguas, apenas superficialmente cobertas pelo verniz da nobreza.
Por outro lado, quando Valentim encontra os fora-da-lei na floresta, estes revelam um código de conduta honroso, contrastando com as práticas enganosas da corte. Embora criminosos, são retratados como homens honrados, enquanto o Duque de Milão e Proteu, apesar de poderosos, carecem de ética. Shakespeare utiliza a floresta não como um espaço carnavalesco onde tudo é permitido, mas como um ambiente onde os fora-da-lei vivem segundo seu próprio código de conduta, tendo sido exilados de uma sociedade em muitos aspectos mais corrupta.
Banquetes como marcadores de transformação social
O banquete final em “Os Dois Cavalheiros de Verona” simboliza uma nova ordem social. Valentim, agora aceito como líder dos fora-da-lei e reconciliado com a corte, anuncia: “Uma festa, uma casa, uma felicidade mútua” (V.iv.173). Este momento representa a dissolução das distinções sociais entre fora-da-lei e nobre, com o banquete servindo como ponto de partida para uma nova ordem social.
Em “Como Gostais”, baseada na narrativa medieval do fora-da-lei “Tale of Gamelyn”, Shakespeare aprofunda esta exploração. A Floresta de Arden é apresentada como um espaço primordial e edênico, onde os personagens exilados vivem como o velho Robin Hood da Inglaterra. Este ambiente permite que as pessoas se libertem das pretensões da corte e vivam segundo sua verdadeira natureza.
O Duque Senior, embora exilado e tecnicamente fora-da-lei, é retratado como o verdadeiro nobre da peça, enquanto seu irmão usurpador, apesar de ocupar a posição de poder, carece de nobreza de caráter. Esta inversão sugere que a verdadeira nobreza reside no caráter e não no título ou posição social.
A tradição do fora-da-lei e a crítica à governança
Shakespeare utiliza a figura do fora-da-lei, particularmente a tradição de Robin Hood, para criticar a má governança e a injustiça de um sistema legal que depende do comportamento ético dos seus defensores. Através do contraste entre seus personagens nobres e banidos, ele questiona as estruturas de poder da mesma forma que os autores das narrativas medievais de fora-da-lei que serviram de fonte para suas peças.
Imagens como jantares na corte, festins na floresta e a caça de veados servem como marcadores das identidades construídas ao longo destas peças. Os personagens em posições de poder e autoridade participam de vários esquemas e maquinações que, embora entretenham, também revelam uma profunda ambivalência sobre a integridade do nobre e a criminalidade do exilado.
A dissolução das fronteiras sociais
Nas comédias de Shakespeare, as distinções sociais entre fora-da-lei, exilado, senhor e nobre são quase completamente dissolvidas, substituídas por uma maior atenção à qualidade intrínseca das palavras e ações de uma pessoa na determinação do seu caráter. Esta dissolução é facilitada pelo estatuto destas peças como comédias, um género não visto como ameaça ao status quo, mas como uma oportunidade de imaginar outra realidade sem necessariamente desafiar a visão do mundo vigente.
A natureza imaginativa, mas não ameaçadora, destas obras é reforçada pela incorporação da “Matéria da Floresta Verde”, que no tempo de Shakespeare era claramente vista como literatura popular e frívola. No entanto, através desta aparente frivolidade, Shakespeare consegue oferecer uma crítica social profunda, sugerindo que a verdadeira nobreza não está no título, mas no caráter.
Esta crítica social, embora envolta na segurança do género cómico e na tradição popular dos contos de fora-da-lei, oferece uma visão radical para a época: a ideia de que a verdadeira nobreza transcende as hierarquias sociais estabelecidas e reside nas qualidades intrínsecas do indivíduo, através de banquetes.



