
Durante o cerco de Paris, entre 1870 e 1871, a cidade-luz mergulhou numa escuridão de privação forçada. A Guerra Franco-Prussiana, que opôs a França ao Reino da Prússia, trouxe consigo não apenas batalhas militares, mas também um cerco que isolou Paris do resto do mundo. A fome, que se instalou como um hóspede indesejado, obrigou os parisienses a reinventar a sua relação com a comida. Foi neste contexto que o restaurante Voisin, um dos mais prestigiados da época, se destacou ao transformar o jardim zoológico do Jardin des Plantes numa fonte improvável de ingredientes para um menu de Natal que desafiava os limites da imaginação gastronómica.
A ironia deste episódio reside no facto de Paris, conhecida pela sua sofisticação culinária, ter sido forçada a recorrer a pratos que, em tempos de abundância, seriam impensáveis. O banquete do Voisin, que incluiu carne de elefante, camelo e outros animais exóticos, tornou-se um símbolo da resiliência parisiense, mas também da capacidade humana de encontrar beleza – ou pelo menos sabor – em circunstâncias adversas.
A fome como motor da criatividade: o cerco e a reinvenção da mesa parisiense
O cerco de Paris começou em setembro de 1870, quando as tropas prussianas cercaram a cidade, cortando o abastecimento de alimentos e outros bens essenciais. À medida que os meses passavam, os parisienses enfrentavam uma escassez cada vez mais severa, que os obrigava a procurar alternativas para sobreviver. Inicialmente, os mercados ainda ofereciam carne de cavalo, mas, com o tempo, até essa opção se tornou rara. Foi então que os olhares se voltaram para os animais do Jardin des Plantes, o famoso jardim zoológico de Paris.
Os elefantes Castor e Pollux, que eram atrações populares do jardim zoológico, tornaram-se, tragicamente, parte do cardápio. A sua carne foi vendida a preços exorbitantes, refletindo a escassez e o desespero da época. No entanto, o consumo de animais exóticos não se limitou aos elefantes. Camelos, cangurus, antílopes e até pavões foram abatidos para alimentar uma população faminta. Este cenário, que hoje pode parecer grotesco, era uma consequência direta da necessidade de sobrevivência.
O restaurante Voisin, conhecido pela sua cozinha requintada, decidiu transformar esta tragédia em arte culinária. Sob a liderança do chef Alexandre Choron, o restaurante criou um menu de Natal que incluía pratos como “consommé de elefante” e “filetes de canguru com molho de pimenta”. A criatividade do chef não era apenas uma tentativa de manter a reputação do restaurante, mas também uma forma de oferecer aos parisienses um momento de normalidade e luxo num período de caos.
O banquete do Voisin: luxo em tempos de privação
O menu de Natal do Voisin, servido a 25 de dezembro de 1870, tornou-se lendário não apenas pela sua excentricidade, mas também pelo seu simbolismo. Num momento em que a maioria dos parisienses mal conseguia encontrar pão, o Voisin oferecia um banquete que incluía pratos como “terrina de antílope”, “costeletas de urso” e “camelo assado com molho de vinho”. A carne de elefante, que era considerada uma iguaria, foi utilizada em várias receitas, incluindo um “ragôut de elefante”.
Este banquete, que poderia ser visto como um ato de insensibilidade, era, na verdade, uma tentativa de preservar a cultura gastronómica francesa num momento em que tudo parecia perdido. O Voisin tornou-se um palco onde a resistência parisiense se manifestava através da comida, transformando a necessidade em virtude.
Uma curiosidade que ilustra o espírito da época é a história de um cliente que, ao provar o “consommé de elefante”, comentou que o sabor era “inesperadamente delicado, mas talvez um pouco pesado para o estômago”. Este tipo de comentário, que hoje pode parecer absurdo, revela como os parisienses tentavam manter o humor e a dignidade mesmo nas circunstâncias mais difíceis.
A ligação entre a gastronomia e a identidade parisiense
O episódio do banquete do Voisin é mais do que uma anedota histórica; é um exemplo de como a gastronomia pode ser uma forma de resistência cultural. Durante o cerco, a comida deixou de ser apenas uma necessidade biológica para se tornar um símbolo de identidade e resiliência. O menu do Voisin, com a sua mistura de luxo e desespero, encapsula a dualidade da experiência parisiense durante a Guerra Franco-Prussiana.
Embora o cerco tenha terminado em janeiro de 1871, o impacto deste período na cultura e na memória coletiva de Paris perdurou. O banquete do Voisin, com os seus pratos exóticos e a sua ligação ao jardim zoológico, tornou-se uma metáfora para a capacidade humana de encontrar beleza e significado mesmo nas situações mais adversas.
A história do cerco de Paris e do banquete do Voisin é uma recordação de que, mesmo em tempos de crise, a criatividade e a cultura podem florescer. E, embora os elefantes Castor e Pollux não tenham sobrevivido ao cerco, a sua memória vive, de forma paradoxal, através de um menu que continua a intrigar e a inspirar gerações.



