A gula como metáfora em “O retrato de Dorian Gray”

Homem jovem sentado em sala de restaurante vitoriana, sentado sozinho a uma grande mesa, sobre a qual se encontram os pratos já servidos

Oscar Wilde, com a sua prosa elegante e carregada de ironia, construiu em O retrato de Dorian Gray um retrato inquietante da decadência moral e do vazio existencial que permeiam a alta sociedade vitoriana. Entre os muitos símbolos que utiliza para explorar a corrupção da alma e a busca incessante por prazer, a comida emerge como uma metáfora subtil, mas poderosa, para a degradação interior do protagonista. A gula, tanto literal como figurativa, torna-se um veículo para expor o hedonismo desenfreado e a insatisfação que consomem Dorian Gray, transformando o ato de comer num espelho das suas escolhas e do seu declínio espiritual.

Desde os primeiros capítulos, Wilde insinua que a relação de Dorian com o mundo material é marcada por uma busca insaciável por sensações. A comida, embora raramente descrita em pormenor, surge como um elemento simbólico que reforça a superficialidade e o desespero do protagonista. Por exemplo, num jantar, Dorian é observado a rejeitar prato após prato, incapaz de encontrar satisfação em qualquer coisa que lhe seja oferecida. Este gesto, aparentemente trivial, revela muito mais do que um simples capricho: é uma manifestação do seu desinteresse pelo mundo físico e da sua tentativa de transcender as necessidades humanas básicas, como se o prazer estético pudesse substituir a nutrição.

A escolha de Wilde em não detalhar os alimentos consumidos por Dorian ou pelos seus convidados é deliberada. A ausência de descrições sensoriais ricas contrasta com a abundância de referências a outros prazeres, como a arte, a música e a moda, sugerindo que a comida, para Dorian, é apenas mais um símbolo de um mundo que ele considera insuficiente. A sua recusa em comer, ou a forma apática como o faz, reflete a rejeição do corpo e das suas necessidades, um tema central na narrativa. No entanto, esta rejeição não é um sinal de ascetismo, mas antes de uma fome insaciável por algo que nunca poderá ser alcançado: a plenitude espiritual num mundo que ele próprio esvaziou de significado.

A gula em O retrato de Dorian Gray não se limita ao consumo literal de alimentos, mas estende-se a uma voracidade metafórica que define a vida de Dorian. Ele devora experiências, pessoas e objetos com a mesma intensidade com que um glutão se atira a um banquete, mas, tal como a comida que rejeita, estas indulgências deixam-no sempre mais vazio do que antes. Wilde utiliza esta dinâmica para explorar o paradoxo do hedonismo: quanto mais Dorian se entrega aos prazeres, mais distante se torna da verdadeira satisfação.

Um exemplo marcante desta relação entre gula e decadência moral é a cena em que Dorian, num jantar, é alvo de comentários sobre o seu comportamento. Lord Henry, o cínico mentor de Dorian, observa que ele parece “fora de si”, enquanto um prato de chaud-froid – uma iguaria francesa que combina elementos quentes e frios – é servido. A escolha deste prato não é acidental. O chaud-froid, com a sua dualidade de temperaturas, simboliza a contradição interna de Dorian: por fora, ele mantém a aparência de vitalidade e beleza, mas, por dentro, está cada vez mais frio e desprovido de vida.

Curiosamente, Wilde era conhecido pelo seu apreço pela gastronomia e pela sua habilidade em usar a comida como um marcador social. Durante a sua vida, frequentou os salões mais exclusivos de Londres, onde os banquetes eram tanto um espetáculo de opulência como uma demonstração de poder. Este contexto histórico enriquece a leitura de O retrato de Dorian Gray, pois permite compreender como Wilde utiliza a comida para criticar a superficialidade e o materialismo da sociedade vitoriana.

À medida que a narrativa avança, a gula de Dorian torna-se mais evidente na forma como ele consome as pessoas à sua volta. Wilde desenha um paralelo entre o apetite literal e o figurativo, sugerindo que a mesma voracidade que leva alguém a devorar um banquete pode levar Dorian a destruir vidas sem remorso. A sua relação com Sybil Vane, por exemplo, é marcada por uma espécie de canibalismo emocional: ele seduz e descarta a jovem atriz com a mesma indiferença com que rejeita os pratos servidos nos jantares.

A metáfora da gula atinge o seu auge quando Wilde descreve a obsessão de Dorian por colecionar objetos de luxo, desde joias raras a tecidos exóticos. Esta acumulação compulsiva, que ele justifica como uma busca pela beleza, é, na verdade, uma extensão do seu apetite insaciável. Tal como um glutão que não consegue parar de comer, Dorian não consegue resistir à tentação de possuir tudo o que considera belo, mesmo que isso o leve à ruína.

Oscar Wilde, com a sua habilidade para entrelaçar temas complexos em narrativas aparentemente simples, utiliza a comida em O retrato de Dorian Gray como um símbolo multifacetado. A gula, tanto literal como metafórica, torna-se uma lente através da qual podemos compreender a decadência moral e o vazio existencial que definem o protagonista. Num mundo onde o prazer é a única bússola, a comida deixa de ser uma fonte de sustento e transforma-se num lembrete constante da insatisfação que acompanha a busca incessante por mais.

Literatura recomendada
Ellmann, Richard. Oscar Wilde. Knopf, 1988.
Wilde, Oscar. The Picture of Dorian Gray. Penguin Classics, 2003.
Woodcock, George. The Paradox of Oscar Wilde. T. Nelson, 1949.

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