A fogueira conjugal


A história da humanidade está intrinsecamente ligada ao domínio do fogo. Quando Richard Wrangham propôs que o ato de cozinhar foi determinante para nossa evolução biológica, abriu também uma janela para compreender como essa prática transformou profundamente nossas estruturas sociais. Entre estas transformações, talvez nenhuma seja tão fundamental quanto a formação dos laços conjugais e a divisão sexual do trabalho que caracteriza as sociedades humanas.

O ato de cozinhar criou um paradoxo evolutivo. Embora tenha proporcionado alimentos mais nutritivos e digeríveis, também expôs os cozinheiros a uma vulnerabilidade sem precedentes. A preparação de alimentos é um processo demorado e conspícuo – o cheiro e o fumo anunciam a presença de comida a grandes distâncias, atraindo potenciais ladrões. Esta vulnerabilidade tornou-se particularmente problemática para as mulheres pré-históricas que, sendo fisicamente menos fortes, precisavam de proteção contra indivíduos que poderiam roubar os seus alimentos.

A solução para este dilema surgiu na forma de uma aliança protetora: o vínculo conjugal primitivo. Como explica Wrangham, “ter um marido garante que os alimentos coletados por uma mulher não serão tomados por outros; ter uma esposa garante que o homem terá uma refeição noturna”. Esta dinâmica estabeleceu as bases para um sistema que podemos caracterizar como uma “proteção primitiva”, onde os homens utilizavam seu poder social para garantir que as mulheres não perdessem os seus alimentos, e em troca, recebiam refeições preparadas.

Esta teoria desafia visões tradicionais sobre a origem do casamento, que frequentemente enfatizam apenas a competição sexual ou a criação conjunta dos filhos. A perspectiva culinária sugere que a divisão sexual do trabalho e os vínculos conjugais podem ter surgido, ou pelo menos se solidificado, como resposta direta aos desafios impostos pela adoção do cozimento dos alimentos.

Um aspecto frequentemente negligenciado na análise da evolução humana é como o cozimento alterou radicalmente a nossa relação com o tempo. Os grandes primatas dedicam aproximadamente metade do seu dia à mastigação de alimentos crus. O cozimento, ao amolecer os alimentos, reduziu drasticamente o tempo necessário para a alimentação.

Esta economia de tempo teve consequências assimétricas para homens e mulheres. Em vez de mastigar durante metade do seu tempo, como tendem a fazer os grandes primatas, as mulheres nas sociedades de subsistência tendem a passar a parte ativa dos seus dias a recolher e preparar alimentos. Os homens, libertados das simples exigências biológicas de um longo dia dedicado à mastigação de alimentos crus, envolvem-se em trabalho produtivo, permitindo-lhes dedicarem-se à caça por períodos mais longos, retornando ao acampamento ao anoitecer para consumir uma refeição substancial. Sem o cozimento, um caçador teria que retornar ao meio-dia para começar a longa tarefa de mastigar alimentos crus, tornando a caça uma atividade menos viável. Assim, o cozimento não apenas possibilitou a divisão sexual do trabalho como a conhecemos, mas também a intensificou, criando uma interdependência económica entre os sexos que se tornou a base da instituição matrimonial.

A atribuição da responsabilidade culinária às mulheres é um fenómeno quase universal nas sociedades humanas. Em 1973, os antropólogos George Murdock e Catarina Provost analisaram 185 culturas e descobriram que o cozimento era a atividade mais associada ao sexo feminino entre todas as 50 atividades produtivas estudadas.

Esta universalidade sugere raízes profundas que transcendem explicações puramente culturais. A teoria de Wrangham propõe que esta divisão não é meramente uma convenção social, mas uma adaptação evolutiva que surgiu da necessidade de proteção durante o processo de cozimento. As mulheres cozinham para os homens não apenas por conveniência mútua, mas porque esta prática está enraizada em uma dinâmica de poder que se estabeleceu há milhões de anos.

A palavra inglesa “lady” deriva do inglês antigo “hlaefdige”, que significa “amassadora de pão”, enquanto “lord” vem de “hlaefweard”, ou “guardião do pão”. Esta etimologia ilustra como a divisão de papéis relacionados à alimentação está profundamente incorporada nas nossas estruturas linguísticas e sociais.

Embora a necessidade de cozinhar tenha colocado as mulheres em uma posição de vulnerabilidade, também lhes conferiu uma forma de poder. Uma esposa que cozinha mal pode ser maltratada, mas também pode responder ao abuso recusando-se a cozinhar ou ameaçando partir. Este equilíbrio de poder, embora assimétrico, criou uma interdependência que caracteriza as relações conjugais humanas. Os homens nas sociedades de caçadores-coletores sofrem significativamente quando não têm esposas ou parentes do sexo feminino para fornecer refeições cozidas, o que torna o casamento uma necessidade prática para eles.

Esta dinâmica explica por que, mesmo em sociedades relativamente igualitárias como a dos Vanatinai da Papua Nova Guiné, onde as mulheres têm considerável autonomia, elas ainda são responsáveis pelo cozimento doméstico, mesmo quando estão cansadas e os homens estão a descansar.

Um aspecto das sociedades humanas é a etiqueta rigorosa que envolve as refeições. Lorna Marshall descreveu como os Kung Nyae Nyae se tratam uns aos outros durante as refeições com extrema delicadeza: “Não observamos nenhum comportamento mal-educado e nenhuma invasão em relação à comida… Achei comovente ver tanta contenção em relação à comida entre pessoas que são todas magras e frequentemente famintas, para quem a comida é uma fonte constante de ansiedade”.

Esta etiqueta não tem paralelo em outras espécies sociais. Entre animais não humanos, itens valiosos que não podem ser consumidos imediatamente e previsivelmente reultam em lutas. A ausência de tais conflitos nas sociedades humanas sugere a existência de normas sociais poderosas que regulam o acesso aos alimentos.

Estas normas são mantidas através de sanções comunitárias. Os caçadores-coletores lidam com ladrões e violadores de normas sociais através de sussurros, rumores e fofocas que evoluem para críticas públicas ou ridicularização. Se o infrator continuar a incorrer na ira pública, poderá ser severamente punido ou mesmo morto. Esta punição capital fornece a sanção que mais completamente impõe a adesão dos caçadores-coletores às normas sociais, e está nas mãos dos homens.

A teoria de Wrangham sugere uma ironia global na história humana. O cozimento trouxe enormes benefícios nutricionais e cognitivos para nossa espécie. No entanto, para as mulheres, a adoção do cozimento também levou a um aumento significativo em sua vulnerabilidade à autoridade masculina.

Os homens foram os maiores beneficiários desta transformação. O cozimento libertou o tempo das mulheres e alimentou seus filhos, mas também as aprisionou em um papel subserviente imposto pela cultura dominada pelos homens. Como conclui Wrangham: “O cozimento criou e perpetuou um novo sistema de superioridade cultural masculina. Não é um quadro bonito”.

Esta perspectiva desafia-nos a reconsiderar não apenas as origens biológicas da humanidade, mas também as raízes das desigualdades de género que persistem até hoje. Se o cozimento foi fundamental para nos tornar humanos, também foi instrumental na criação de estruturas sociais que continuam a moldar as nossas relações.

Na sociedade contemporânea, observamos transformações significativas nos papéis de género relacionados à cozinha. Homens em sociedades industrializadas frequentemente assumem responsabilidades culinárias, seja como chefs profissionais ou no ambiente doméstico. Esta evolução reflete mudanças mais amplas nas estruturas sociais e económicas que sustentam os relacionamentos conjugais.

No entanto, mesmo com estas mudanças, os padrões estabelecidos há milhões de anos continuam a influenciar as nossas interações. A divisão do trabalho doméstico permanece desigual em muitas sociedades, com as mulheres ainda assumindo a maior parte das responsabilidades culinárias. Esta persistência sugere que as estruturas sociais estabelecidas pelo cozimento estão profundamente enraizadas em nossa psicologia evolutiva.

A compreensão da ligação entre cozinha e casamento oferece uma nova lente para examinar as transformações contemporâneas nas relações conjugais. À medida que os papéis de género continuam a evoluir, podemos estar a testemunhar não apenas mudanças culturais, mas também adaptações a um novo ambiente onde a proteção física dos alimentos já não é uma preocupação primordial.

A fogueira que uniu os primeiros casais humanos continua a arder, embora de formas diferentes, nas cozinhas contemporâneas. Reconhecer sua influência é o primeiro passo para decidir conscientemente como queremos que ela molde nosso futuro.

Literatura recomendada
Wrangham, Richard. (2009). Catching Fire: How Cooking Made Us Human. Basic Books.
Kaberry, Phyllis. (1939). Aboriginal Woman: Sacred and Profane. Routledge.
Boehm, Christopher. (1999). Hierarchy in the Forest: The Evolution of Egalitarian Behavior. Harvard University Press.

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