A cozinha Frankfurt

Representação minimalista de uma bancada de cozinha funcional, com diversis adereções e utensilios pendurados na parede

A história da habitação moderna não pode ser contada sem mencionar um dos seus elementos mais revolucionários: a cozinha Frankfurt. Este projeto, concebido pela arquiteta austríaca Margarete Schütte-Lihotzky na década de 1920, não foi apenas uma inovação em termos de design, mas uma verdadeira transformação na forma como pensamos o espaço doméstico e as relações sociais que nele se desenvolvem.

O período após a Primeira Guerra Mundial foi marcado por profundas transformações sociais na Europa. A escassez de mão-de-obra doméstica, anteriormente abundante nas casas da classe média e alta, obrigou a uma reconsideração do espaço doméstico.Pela primeira vez na história, as elegantes mulheres europeias viram-se obrigadas a entrar na sua própria cozinha. E poucas gostaram do que viram.

Esta mudança coincidiu com o surgimento de um movimento de mulheres consolidado na Alemanha, que desde a década de 1880 abordava questões relacionadas com a eficiência doméstica e o ensino da economia doméstica nas escolas. O valor deste trabalho foi reconhecido por arquitetos como Bruno Taut, que em 1924 sintetizou a sua conceção da relação ideal entre arquiteto e cliente com o lema “Der Architeckt denkt, die Hausfrau lenkt” (O arquiteto pensa, a dona de casa guia).

Neste contexto de transformação, o modernismo emergiu como uma resposta às necessidades de um mundo novo. Após a guerra, um espírito evangelizador dominava a Europa: designers, filósofos e políticos sentiam a necessidade de construir uma sociedade que libertasse a humanidade não apenas dos horrores da guerra, mas também das desigualdades sociais que a precederam. Para isso, eram necessários novos tipos de edifícios e uma nova abordagem à vida que neles se desenvolveria.

Margarete Schütte-Lihotzky não era uma arquiteta comum. Formada na Escola de Artes Aplicadas de Viena, foi a primeira mulher arquiteta austríaca, numa época em que a profissão era dominada por homens. A sua sensibilidade para as questões sociais e o seu interesse pela melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras levaram-na a desenvolver um projeto que transformaria para sempre o espaço doméstico.

Quando o livro da americana Christine Frederick sobre eficiência doméstica foi traduzido para alemão após a guerra, encontrou em Lihotzky uma leitora ávida. A arquiteta austríaca absorveu os princípios de gestão científica aplicados ao lar e desenvolveu um conceito que se tornaria um dos designs mais influentes do século XX: a cozinha Frankfurt.

Inspirada parcialmente nas cozinhas dos vagões-restaurante ferroviários, a cozinha Frankfurt era essencialmente uma versão em escala reduzida da sua predecessora americana. Projetada para ser económica e compacta, incorporava uma série de dispositivos para poupar espaço, como uma tábua de passar extensível e compartimentos metálicos extraíveis para ingredientes básicos como arroz, açúcar e farinha.

O design de Lihotzky baseava-se num estudo meticuloso dos movimentos corporais realizados por uma dona de casa durante as suas tarefas diárias. Cada elemento foi pensado para minimizar o esforço e maximizar a eficiência. As superfícies de trabalho foram colocadas à altura ideal, os utensílios organizados por frequência de uso, e o espaço foi otimizado para eliminar movimentos desnecessários.

A cozinha Frankfurt foi a primeira a ser produzida em massa – na década de 1920, mais de 10.000 unidades foram instaladas graças ao programa de habitação social de Frankfurt – e tornou-se o protótipo da cozinha moderna que utilizamos atualmente. Este facto por si só já seria suficiente para garantir o seu lugar na história do design, mas o seu impacto foi muito além da mera funcionalidade.

Apesar do seu design engenhoso e sucesso comercial, a cozinha Frankfurt não foi universalmente adorada. Projetada a pensar nos movimentos corporais de uma dona de casa, acabou por isolar efetivamente as mulheres do resto da casa e das suas próprias famílias. A cozinha revelou-se inflexível: demasiado estreita para que duas pessoas cozinhassem em simultâneo, impossível para que as crianças brincassem nela e, certamente, demasiado pequena para nela se fazer refeições.

Estas características não foram acidentais. Para Lihotzky, cozinhar era uma tarefa enfadonha que devia estar separada do seu produto final, a comida. Como ela própria escreveu: “Em que consiste a vida atual na realidade? Em primeiro lugar, consiste em trabalhar e, em segundo lugar, no descanso, na companhia e no prazer”. Esta visão refletia uma conceção modernista da vida que separava claramente o trabalho do lazer, o funcional do prazeroso.

O sucesso da cozinha Frankfurt fez com que a abordagem prática – e de não prazer – pioneira das feministas americanas tivesse um impacto no Ocidente. Mais uma vez, cozinhar foi relegado para as zonas invisíveis da casa, só que desta vez a senhora da casa também foi relegada juntamente com a cozinha. Longe de libertar as donas de casa dos trabalhos mais pesados, como se pretendia, a cozinha Frankfurt – e os milhões de cozinhas alongadas que seguiram o seu modelo – garantiram que cozinhar continuasse a ser a tarefa isolada e ingrata que a sociedade elegante sempre considerou que era.

A cozinha Frankfurt revelou uma falha fundamental no pensamento dos primeiros modernistas que tem perturbado as abordagens arquitetónicas desde então. Com as melhores intenções – a construção de uma sociedade melhor – o modernismo tentou criar um mundo tão perfeito que fosse capaz de libertar homens e mulheres das suas imperfeições.

A engenharia doméstica transformou-se em engenharia social: a criação de edifícios racionais para serem habitados por pessoas racionais. Esta visão foi amplamente promovida pelo arquiteto suíço Le Corbusier, para quem os interiores desordenados da Europa do fim do século refletiam os “valores burgueses demolidores” de “um período insuportável que não poderia durar muito”.

Le Corbusier acreditava que, vivendo num ambiente puro, o homem moderno purgar-se-ia das suas imperfeições tanto física como moralmente: “Tens a casa limpa. Já não há escuridão nem cantos sujos. Tudo se mostra tal como é. Aí está a limpeza interior…”. Esta conceção do espaço doméstico como um lugar de pureza e racionalidade encontrou na cozinha Frankfurt a sua expressão mais acabada.

O legado da cozinha Frankfurt é ambivalente. Por um lado, estabeleceu princípios de design que continuam a influenciar as cozinhas contemporâneas: a organização racional do espaço, a otimização dos movimentos, a integração de equipamentos e a preocupação com a higiene. Por outro lado, contribuiu para uma visão da cozinha como um espaço puramente funcional, desprovido de prazer e sociabilidade.

Esta tensão entre funcionalidade e prazer, entre eficiência e sociabilidade, continua a marcar o design de cozinhas até aos dias de hoje. Nas décadas seguintes, surgiram tentativas de reconciliar estes aspetos aparentemente contraditórios. Nos Estados Unidos, por exemplo, arquitetos como George Nelson e Henry Wright defendiam, no seu influente livro de 1945 “A habitação do amanhã”, que a cozinha alongada já não era adequada para a vida moderna:

“Os criados estão a desaparecer. A Primeira Guerra Mundial afastou as mulheres das tarefas domésticas e deu-lhes um emprego. A Segunda Guerra Mundial levou um imenso número delas e colocou-as nas fábricas. As famílias de classe média e os ricos, cada vez mais abandonados aos seus próprios recursos, projetaram um olhar preconceituoso sobre a cozinha reduzida à sua mínima expressão.”

A resposta, era fundir a cozinha e a sala de estar, substituindo o ambiente de bloco operatório das cozinhas alongadas por um espaço que fosse agradável para viver, assim como para trabalhar, graças à incorporação de superfícies de madeira natural, cores brilhantes e tecidos. Esta conceção radical introduziu a ideia da cozinha aberta, integrada no espaço social da casa.

Hoje, a cozinha ocupa um lugar paradoxal nas nossas casas. Por um lado, tornou-se um espaço de representação social, um símbolo de estatuto e um lugar de convívio. Por outro lado, cozinhamos cada vez menos, recorrendo a refeições pré-preparadas e serviços de entrega. A cozinha tornou-se, em muitos casos, um espaço mais para ser exibido do que utilizado.

Esta evolução reflete as transformações sociais e culturais das últimas décadas: a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, a valorização do tempo de lazer, a individualização dos hábitos alimentares e a crescente importância da imagem na definição do estatuto social. A cozinha Frankfurt, com a sua ênfase na eficiência e na funcionalidade, parece simultaneamente ultrapassada e surpreendentemente atual.

A cozinha Frankfurt representa, assim, muito mais do que um simples design de cozinha. É um espelho das aspirações, contradições e tensões da modernidade. Ao mesmo tempo que procurava libertar as mulheres do trabalho doméstico através da eficiência, acabou por isolá-las num espaço separado do resto da casa. Ao tentar criar um ambiente racional e higiénico, negou o prazer sensual associado à preparação e partilha de alimentos.

No entanto, o seu legado é inegável. A cozinha Frankfurt estabeleceu princípios de design que continuam a influenciar as nossas casas e, por extensão, as nossas vidas. Mais do que isso, obriga-nos a refletir sobre as relações entre espaço, género, trabalho e prazer, questões que continuam a ser centrais na forma como habitamos e pensamos o espaço doméstico.

Num mundo onde a tecnologia promete libertar-nos cada vez mais do trabalho doméstico, mas onde paradoxalmente passamos cada vez mais tempo a ver programas de culinária e a admirar cozinhas perfeitamente equipadas que raramente utilizamos, a cozinha Frankfurt continua a ser um poderoso lembrete de como o design pode transformar não apenas os espaços que habitamos, mas também as relações sociais que neles se desenvolvem.

Literatura recomendada
Steel, Carolyn. Ciudades hambrientas: Cómo el alimento moldea nuestras vidas. Capitán Swing, 2020.
Henderson, Susan R. A Revolution in the Woman’s Sphere: Grete Lihotzky and the Frankfurt Kitchen. MIT Press, 1996.
Bullock, Nicholas. First the Kitchen: Then the Façade. Journal of Design History, vol. 1, núm. 3/4, 1988.

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