A comida como reflexo do egoísmo na ocupação alemã

Desenho em tons cinzentos e castanhos-sépia de uma rapariga sentada a uma mesa pobre com uma taça grande com um caldo deslavado, ao fundo uma mulher de costas junto a uma bancada de cozinha pobre de adereços

Durante a ocupação alemã em França, a comida deixou de ser apenas um elemento de sustento para se transformar num símbolo de sobrevivência, poder e desigualdade. Num contexto de escassez e racionamento, o acesso aos alimentos tornou-se um marcador social, expondo as fragilidades e os excessos de uma sociedade em colapso. Irène Némirovsky, na sua obra Suite Française, captou com precisão este fenómeno, utilizando a comida como um espelho das tensões morais e sociais que emergiram durante a guerra. Através de descrições vívidas e contrastantes, a autora revelou como a alimentação, ou a falta dela, moldou comportamentos e expôs as contradições de uma sociedade dividida entre o luxo e a privação.

A guerra trouxe consigo uma transformação radical na relação das pessoas com a comida. O racionamento imposto pelas autoridades ocupantes e a escassez de produtos básicos criaram uma obsessão coletiva pelo acesso a alimentos. Esta obsessão, no entanto, não se manifestava apenas entre os mais pobres ou famintos. Pelo contrário, Némirovsky retrata como as classes altas, habituadas ao conforto e à abundância, reagiram de forma quase grotesca à possibilidade de perderem os seus privilégios. Gabriel Corte, um escritor burguês e personagem central de Suite Française, exemplifica esta dinâmica. Apesar de estar rodeado pelo caos da guerra, a sua atenção permanece fixada em refeições requintadas e memórias gastronómicas. A sua obsessão com pratos como foie gras e trufas não é apenas um reflexo do seu estatuto social, mas também uma tentativa de negar a realidade brutal que o rodeia.

Através de descrições detalhadas, Némirovsky sublinha o contraste entre o luxo das refeições de Corte e a miséria que ele observa à distância, do conforto do seu carro. Enquanto os refugiados lutam por migalhas, Corte recorda com nostalgia os pequenos pâtés fritos em manteiga que provou em Tours, ignorando deliberadamente o sofrimento humano à sua volta. Esta desconexão entre o privilégio e a realidade da guerra é acentuada pela forma como a comida se torna um refúgio psicológico, um meio de preservar uma ilusão de normalidade e superioridade.

A comida, em Suite Française, não é apenas um símbolo de sobrevivência, mas também um marcador de desigualdade social. Enquanto personagens como Corte se entregam a fantasias gastronómicas, outros lutam para garantir o mínimo necessário para sobreviver. A mãe de um recém-nascido, que não come há mais de um dia, é um exemplo pungente da realidade enfrentada por muitos durante a ocupação. No entanto, mesmo diante de tal sofrimento, Corte permanece indiferente, preocupado apenas em recuperar uma cesta de foie gras e champanhe que lhe foi roubada. Este episódio ilustra como a guerra exacerbou o egoísmo e a insensibilidade, especialmente entre aqueles que tinham meios para se proteger das piores consequências do conflito.

Némirovsky utiliza a comida para explorar estas contradições, mostrando como o luxo e a privação coexistem de forma grotesca durante a guerra. A atenção meticulosa aos detalhes das refeições de Corte contrasta com a descrição de filas intermináveis para obter pão ou sopa. Este contraste não é apenas uma crítica à elite francesa, mas também uma reflexão sobre a fragilidade da civilização em tempos de crise. A comida, que deveria ser um símbolo de partilha e comunidade, torna-se um instrumento de divisão e exclusão.

Curiosamente, a comida também desempenha um papel na preservação da memória e na resistência ao esquecimento. Tal como a madeleine de Proust evoca memórias de um passado perdido, as descrições gastronómicas de Némirovsky capturam a essência de uma época marcada pela escassez e pelo medo. No entanto, em vez de oferecerem conforto, estas memórias sensoriais sublinham a ironia e a crueldade da guerra. Quando Corte compara a carne rosada de uma truta à pele de uma criança, a imagem é simultaneamente bela e perturbadora, revelando a desconexão entre o prazer gastronómico e a realidade brutal da guerra.

Esta tensão entre o prazer e a privação é central para a narrativa de Némirovsky. A autora, que escreveu o romance enquanto vivia sob a ocupação, utiliza a comida como um meio de transmitir a experiência sensorial da guerra. As descrições detalhadas de refeições, filas para pão e a obsessão com alimentos inacessíveis não são meros detalhes decorativos, mas sim uma forma de preservar para a posteridade as emoções e os dilemas morais de um período sombrio da história.

Uma breve curiosidade ilustra bem esta relação entre comida e memória: após a sua prisão, Némirovsky escreveu uma carta à família mencionando que tinha comido groselhas enquanto esperava na esquadra da polícia. Este detalhe aparentemente banal adquire um peso simbólico, mostrando como até os momentos mais triviais podem ser carregados de significado em tempos de crise.

Através de Suite Française, Irène Némirovsky oferece uma visão única sobre como a comida se tornou uma obsessão durante a ocupação alemã. Mais do que um simples reflexo das condições materiais da época, a comida emerge como um símbolo poderoso das tensões sociais, morais e emocionais que definiram este período.

Literatura recomendada
Némirovsky, Irène, Suite Française, D. Quixote, 2005.
Proust, Marcel, Em Busca do Tempo Perdido, Edições Asa, 2003.
Zweig, Stefan, O Mundo de Ontem: Recordações de um Europeu, Zahar, 2014.

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