A comida como entretenimento global

mesa posta para lanche, vista de cima, no centro um bolo decorado com paises como um semi globo terrestre, em branco e castanhos, os pratos pequenos dispostos circularmente contêm comida diversa como pequenos bolos, bolachas, figos, frutos secos e pequenos recipientes contêm geleias

A cozinha, outrora confinada ao espaço doméstico ou às mãos de profissionais discretos, transformou-se num espetáculo global que transcende a mera preparação de alimentos. Este fenómeno, que combina entretenimento, comércio e cultura, reflete mudanças profundas na forma como a sociedade contemporânea consome não apenas comida, mas também ideias, estilos de vida e narrativas. A ascensão dos chefs-celebridades, a popularidade dos programas de televisão culinária e a proliferação de conteúdos digitais sobre gastronomia são apenas algumas das manifestações deste fenómeno. A cozinha tornou-se um palco, e os chefs, as suas estrelas.

A figura do chef, que durante séculos permaneceu nos bastidores, ganhou uma nova dimensão com o advento dos meios de comunicação de massa. No século XIX, nomes como Auguste Escoffier começaram a emergir como símbolos de excelência culinária, mas foi apenas no século XX que os chefs se tornaram figuras públicas amplamente reconhecidas. Julia Child, com o seu programa “The French Chef”, transmitido pela televisão americana nos anos 60, foi uma das pioneiras a levar a cozinha para o ecrã, transformando a preparação de pratos sofisticados num espetáculo acessível e cativante.

No entanto, o verdadeiro boom dos chefs celebridades ocorreu nas últimas décadas, impulsionado por canais especializados como o Food Network e pela proliferação de reality shows culinários. Jamie Oliver, por exemplo, não é apenas um cozinheiro; é uma marca global. A sua capacidade de combinar carisma, talento e uma narrativa de proximidade com o público transformou-o num fenómeno mediático. Oliver não só ensina receitas, mas também vende um estilo de vida, desde utensílios de cozinha a campanhas de saúde pública. Este modelo de chef-celebridade, que mistura educação, entretenimento e comércio, tornou-se a norma.

A popularidade destes chefs reflete uma mudança cultural mais ampla. Num mundo cada vez mais digital e globalizado, o público procura figuras que personifiquem autenticidade e expertise. Os chefs celebridades oferecem isso, mas também algo mais: a promessa de que, ao seguir as suas receitas ou comprar os seus produtos, qualquer pessoa pode aceder a um mundo de sofisticação e prazer gastronómico. Esta promessa, no entanto, é muitas vezes mediada por uma indústria que transforma a autenticidade em mercadoria.

A televisão desempenhou um papel central na transformação da cozinha em espetáculo. Desde os primeiros programas de culinária, como os de Dione Lucas e Julia Child, até aos reality shows competitivos como “MasterChef” e “Top Chef”, a televisão não só popularizou a gastronomia, mas também a dramatizou. A cozinha, que antes era vista como um espaço de trabalho, tornou-se um cenário onde se desenrolam histórias de superação, criatividade e, por vezes, conflito.

Programas como “MasterChef” não se limitam a ensinar técnicas culinárias; eles criam narrativas emocionais que cativam o público. Os concorrentes não são apenas cozinheiros; são personagens com histórias de vida que se desenrolam diante das câmaras. A tensão de um prato que pode falhar, o júbilo de uma vitória inesperada ou a crítica severa de um jurado transformam a cozinha num espaço de drama e espetáculo.

Além disso, a televisão culinária explora a estética da comida de forma quase cinematográfica. Close-ups de ingredientes frescos, o som de uma faca a cortar vegetais ou o vapor a subir de um prato acabado de preparar criam uma experiência sensorial que vai além do paladar. Este tipo de representação, muitas vezes descrito como “pornografia alimentar”, apela aos sentidos de uma audiência que, na maioria das vezes, não recriará os pratos em casa, mas que encontra prazer em assistir ao processo.

A teatralidade da cozinha televisiva também reflete uma mudança na forma como o público se relaciona com a comida. Não se trata apenas de aprender a cozinhar, mas de participar, ainda que de forma passiva, num espetáculo que celebra a criatividade, a técnica e a paixão pela gastronomia.

Com o advento da internet e das redes sociais, a cozinha como espetáculo atingiu uma nova dimensão. Plataformas como YouTube, Instagram e TikTok democratizaram o acesso à gastronomia, permitindo que qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, partilhe receitas, técnicas e experiências culinárias. Esta democratização, no entanto, também trouxe consigo uma nova forma de consumo mediado, onde a comida é frequentemente apresentada como um objeto de desejo visual e cultural.

Os food bloggers e influencers desempenham um papel semelhante ao dos chefs celebridades, mas com uma abordagem mais pessoal e acessível. Eles não apenas mostram como preparar pratos, mas também criam narrativas em torno da comida, desde viagens gastronómicas a histórias familiares. Esta personalização da gastronomia reflete uma tendência mais ampla na cultura digital, onde o público procura conexões autênticas e experiências partilhadas.

No entanto, a globalização do espetáculo culinário também levanta questões sobre autenticidade e apropriação cultural. Pratos tradicionais de várias culturas são frequentemente reinterpretados ou simplificados para se adaptarem a um público global, o que pode levar à perda de contextos históricos e culturais. Por outro lado, esta globalização também promove a diversidade e o intercâmbio cultural, permitindo que pessoas de diferentes partes do mundo descubram e apreciem novas tradições gastronómicas.

A cozinha digital, com a sua ênfase na estética e na narrativa, também reflete a crescente desconexão entre a comida como objeto de consumo e a comida como experiência vivida. Fotografias de pratos impecavelmente apresentados e vídeos de receitas rápidas e fáceis criam uma ilusão de simplicidade e perfeição que muitas vezes não corresponde à realidade da cozinha quotidiana.

Literatura recomendada
Child, Julia. The French Chef Cookbook. Knopf, 1968.
Oren, Tasha. Food TV: The Strange World of Food and Television. Bloomsbury Academic, 2023.
Spence, Charles, e Piqueras-Fiszman, Betina. The Perfect Meal: The Multisensory Science of Food and Dining. Wiley-Blackwell, 2014.

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