A comida como arma narrativa em Pulp Fiction

Sobre um fundo esverdeado uma parma e uma taça repousam lado a lado

A relação entre comida e cinema é tão antiga quanto a própria sétima arte. No entanto, poucos realizadores conseguem explorar este elemento com a mesma intensidade e propósito que Quentin Tarantino. Em Pulp Fiction (1994), a comida não é apenas um detalhe de cenário ou um adereço para enriquecer o ambiente. Pelo contrário, ela desempenha um papel central na construção da narrativa, intensificando a tensão e servindo como catalisador para momentos de violência. Mas como é que Tarantino transforma algo tão mundano como uma refeição num elemento de suspense e brutalidade?

A resposta está na forma como ele manipula os sentidos do espectador, utilizando a comida como um símbolo de poder, controlo e, por vezes, de ironia. Desde o aroma imaginado de um hambúrguer suculento até ao som de um milkshake a ser sorvido, cada detalhe é cuidadosamente orquestrado para criar uma ligação visceral entre o público e os personagens.

Uma das cenas mais memoráveis de Pulp Fiction ocorre logo no início, quando Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) e Vincent Vega (John Travolta) confrontam um grupo de jovens criminosos. No centro da cena está um simples hambúrguer da cadeia fictícia Big Kahuna Burger.

Jules, ao saborear deliberadamente o hambúrguer de um dos jovens, transforma um gesto aparentemente inocente num ato de humilhação. A descrição sensorial é quase palpável: o som do papel a ser desembrulhado, a mordida lenta e o comentário sobre o sabor. “Este é um hambúrguer saboroso”, diz Jules, com um tom que mistura sarcasmo e ameaça. A comida, aqui, torna-se uma arma psicológica, usada para desestabilizar e intimidar. A atenção aos detalhes sensoriais faz com que o público quase sinta o sabor do Big Kahuna Burger, apenas para ser abruptamente confrontado com a violência que se segue.

Mas por que razão Tarantino escolhe um hambúrguer? Este alimento, associado à cultura americana e à informalidade, contrasta com a gravidade da situação. A escolha não é acidental; é uma metáfora para a banalidade do mal. A violência que se segue é ainda mais chocante porque surge num contexto aparentemente trivial.

Outro momento emblemático que envolve comida em Pulp Fiction ocorre durante o encontro entre Vincent Vega e Mia Wallace (Uma Thurman) no restaurante temático Jack Rabbit Slim’s. Aqui, a comida assume um papel diferente, mas igualmente significativo.

O milkshake de cinco dólares, que Vincent inicialmente questiona pelo preço exorbitante, torna-se um símbolo de indulgência e extravagância. A descrição visual do milkshake – servido num copo alto, com uma textura cremosa e uma cereja no topo – evoca uma sensação de nostalgia e prazer. No entanto, a cena está carregada de tensão subjacente.

A interação entre Vincent e Mia é marcada por um jogo de sedução e perigo. A comida, neste caso, funciona como um elemento de ligação entre os dois, mas também como um lembrete da fragilidade da situação. O espectador sabe que Vincent está a pisar terreno perigoso, e o milkshake, com a sua doçura aparente, contrasta com a ameaça iminente de violência.

Para além do seu papel narrativo, a comida em Pulp Fiction também serve como uma metáfora para a cultura americana. Tarantino utiliza alimentos como hambúrgueres, batatas fritas e milkshakes para explorar temas como o consumismo, a globalização e a identidade cultural.

Outro exemplo é a conversa entre Jules e Vincent sobre o “Royale with Cheese”. Este diálogo banal revela muito sobre as diferenças culturais e a forma como os americanos percebem o mundo. A comida, aqui, torna-se um ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre a sociedade e as suas contradições.

O Big Kahuna Burger, que aparece em Pulp Fiction, é uma criação fictícia de Tarantino que surge em vários dos seus filmes, incluindo Reservoir Dogs e Death Proof. Este detalhe não é apenas uma brincadeira do realizador; é uma forma de criar um universo interligado, onde a comida funciona como um elemento de continuidade.

Literatura recomendada
Bordwell, David; Thompson, Kristin. Film Art: An Introduction. McGraw-Hill Education, 2016.
Ellis, John. Visible Fictions: Cinema, Television, Video. Routledge, 1992.
Wood, Robin. Hollywood from Vietnam to Reagan… and Beyond. Columbia University Press, 2003.

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