
Num mundo onde a comida se tornou protagonista de milhões de ecrãs, os criadores de conteúdo digital estão a transformar não apenas o que comemos, mas como pensamos sobre alimentação. Longe de ser apenas entretenimento, este fenómeno representa uma profunda mudança cultural que mistura autenticidade, empreendedorismo e novas formas de autoridade culinária. A ascensão dos vloggers de culinária não é apenas uma tendência passageira, mas um reflexo de como a tecnologia está a remodelar as nossas relações com a comida, identidade e comunidade.
A democratização da expertise culinária
A autoridade culinária já não pertence exclusivamente aos chefs formados em escolas de elite ou aos críticos gastronómicos tradicionais. Os vloggers de culinária introduziram uma nova forma de expertise que desafia as hierarquias estabelecidas no mundo da gastronomia. Estes criadores de conteúdo apresentam-se como pessoas comuns com paixão pela comida, utilizando plataformas como YouTube e Instagram para partilhar conhecimentos e técnicas de forma acessível.
Esta transformação representa uma democratização parcial do conhecimento culinário. O aconselhamento culinário online representa, em muitos aspectos, o triunfo definitivo da expertise. Os vloggers cultivam uma sensação de autenticidade através de técnicas específicas: filmagens aparentemente não editadas, admissão de erros culinários e uma abordagem conversacional que cria uma ligação íntima com o público.
A YouTuber Rachel Ama exemplifica esta tendência ao enquadrar as suas demonstrações de pratos veganos com momentos pessoais onde canta e dança pela casa, complementados por formatos típicos como “o que como num dia” e “compras de supermercado veganas”. Estas estratégias criam uma ilusão de relação bilateral entre criador e espectador, algo que os meios tradicionais raramente conseguem.
No entanto, esta democratização tem limites importantes. O universo dos bloggers alimentares tende a reforçar hierarquias baseadas em género, raça e classe. A maioria dos influenciadores alimentares de alto perfil continua a ser predominantemente branca e de classe média-alta, o que sugere que nem todas as vozes têm igual oportunidade de serem amplificadas neste espaço aparentemente democrático.
Entre autenticidade e empreendedorismo
O paradoxo central dos vloggers culinários reside na tensão entre autenticidade e comercialização. Enquanto a sua popularidade depende da perceção de genuinidade, o seu sucesso exige uma cuidadosa gestão da marca pessoal. A ética participativa e de partilha do YouTube – com a sua ênfase na autenticidade e comunidade – é também central para as lógicas das práticas empreendedoras permitidas pela plataforma.
Os criadores de conteúdo culinário desenvolvem identidades de marca que destacam os aspectos mais apelativos ou lucrativos do seu eu, minimizando aqueles que não servem os seus objetivos comerciais. A autenticidade torna-se, assim, uma performance estratégica. O canal SORTEDfood ilustra esta dinâmica: apresenta-se como um projeto de amigos universitários entusiastas, mas opera com uma equipa profissional de dezasseis pessoas e o seu chef principal, Ben Ebbrell, é representado pela mesma agente de relações públicas que gere chefs e celebridades tradicionais.
Esta hibridização entre o amador e o profissional desafia as categorias tradicionais. É cada vez mais difícil traçar uma linha clara entre o âmbito profissionalizado das instituições comerciais como a televisão e o das plataformas de partilha de vídeos. Os vloggers bem-sucedidos não aspiram necessariamente a contratos televisivos, pois as plataformas digitais oferecem-lhes autonomia e potencial económico significativo.
A transformação das práticas alimentares na era digital
Os vloggers culinários não estão apenas a mudar como aprendemos sobre comida, mas também a transformar as práticas alimentares quotidianas. Ao contrário dos programas de televisão tradicionais, o conteúdo digital permite uma interação direta com o público, criando comunidades em torno de estilos alimentares específicos.
O fenómeno “clean eating” exemplifica esta influência. Popularizado por influenciadores digitais como Ella Woodward (Deliciously Ella), este movimento promove alimentos “puros” e “não processados” como caminho para saúde e vitalidade. Em 2016, 90% dos livros mais vendidos na Amazon UK na categoria alimentação focavam-se em “alimentação saudável e dieta”. Estes influenciadores não vendem apenas receitas, mas estilos de vida completos.
Simultaneamente, outros criadores de conteúdo oferecem alternativas a estas tendências. Kate Allinson e Kay Featherstone, criadoras do Pinch of Nom, alcançaram enorme sucesso com versões de baixas calorias de “comida suja” – pratos de conveniência como “Loaded Potato Skins” e “Cheeseburger Pizza”. O seu livro bateu recordes de vendas no Reino Unido em 2019, demonstrando que existe espaço para diferentes abordagens à alimentação no ecossistema digital.
Veganismo e masculinidades digitais
Um dos fenómenos mais interessantes no espaço dos vloggers culinários é a reconfiguração das identidades de género através das práticas alimentares. O veganismo, historicamente associado ao feminino, está a ser reimaginado por criadores de conteúdo masculinos que desenvolvem novas formas de masculinidades veganizadas.
Canais como BOSH! e Avant-Garde Vegan apresentam o veganismo como compatível com identidades masculinas tradicionais, focando-se em versões veganas de pratos reconfortantes e indulgentes. Gaz Oakley, do Avant-Garde Vegan, utiliza técnicas culinárias profissionais e uma estética visual sofisticada para distanciar o veganismo das suas associações com restrição e feminilidade.
Esta transformação digital do veganismo ilustra como os vloggers culinários não estão apenas a mudar o que comemos, mas também a reconfigurar os significados culturais associados a práticas alimentares específicas. Ao tornar o veganismo mais acessível e menos politizado, estes criadores de conteúdo contribuem para a sua normalização, embora por vezes à custa de diluir as suas dimensões éticas e políticas.