A ascenção do fenómeno da “porn food”


A comida, desde sempre, ocupou um lugar central na vida humana, não apenas como necessidade biológica, mas também como símbolo cultural, social e emocional. No entanto, o século XXI trouxe uma transformação inesperada: a comida deixou de ser apenas algo que se consome para se tornar algo que se contempla. As redes sociais, com a sua capacidade de disseminar imagens de forma instantânea e global, transformaram pratos e refeições em verdadeiras obras de arte visuais. Mas o que explica esta obsessão contemporânea por fotografar, partilhar e admirar comida? Por que razão as imagens de comida, muitas vezes apelidadas de “porn food”, se tornaram tão populares?

O termo “porn food” surgiu pela primeira vez em 1977, num contexto que já antecipava a relação entre comida e desejo visual. Originalmente usado para descrever fotografias de receitas em livros de culinária, o conceito referia-se à forma como estas imagens, cuidadosamente estilizadas, criavam uma sensação de desejo quase inalcançável. A comida, brilhante e perfeita, era apresentada como algo que se podia consumir apenas com os olhos. Este fenómeno, que começou com livros e revistas, encontrou nas redes sociais o palco ideal para se expandir.

Plataformas como Instagram e Pinterest transformaram a comida num espetáculo diário. Fotografias de pratos elaborados, sobremesas exuberantes e até refeições simples, mas bem apresentadas, inundam os feeds de milhões de utilizadores. A ironia, porém, é evidente: muitas destas imagens não representam refeições reais, mas sim criações estilizadas, cuidadosamente iluminadas e editadas para maximizar o impacto visual. Estas representações fotográficas de comida são objetos simultaneamente próximos e inacessíveis.

Mas o que torna estas imagens tão irresistíveis? A resposta pode estar na biologia humana. O cérebro é naturalmente programado para responder a estímulos visuais relacionados com comida, uma herança evolutiva que nos ajudou a identificar alimentos nutritivos e apetecíveis. No entanto, no contexto digital, este instinto é manipulado para criar o que alguns especialistas chamam de “fome hedónica” — um desejo por comida que não está relacionado com a necessidade física, mas sim com o prazer visual e emocional.

Se, no passado, a comida era um símbolo de status reservado às elites, as redes sociais democratizaram o acesso a este universo visual. Qualquer pessoa com um smartphone pode fotografar a sua refeição e partilhá-la com o mundo, transformando-se num “influenciador alimentar” em potencial. Esta democratização, no entanto, não elimina as dinâmicas de poder e exclusividade. Pelo contrário, muitas vezes reforça-as.

As imagens de comida nas redes sociais não são apenas sobre o que se come, mas também sobre como e onde se come. Um brunch num café trendy, um jantar num restaurante Michelin ou até uma refeição caseira com ingredientes orgânicos tornam-se símbolos de um estilo de vida aspiracional. A comida, neste contexto, deixa de ser apenas alimento e transforma-se numa declaração de identidade.

Um exemplo curioso é o fenómeno do açaí, uma fruta tradicionalmente consumida por comunidades indígenas na Amazónia, mas que, nas redes sociais, se tornou um símbolo de saúde e bem-estar no mundo ocidental. Fotografias de tigelas de açaí, decoradas com frutas e sementes, inundam o Instagram, muitas vezes acompanhadas por hashtags como #superfood ou #healthy. Este exemplo ilustra como as redes sociais não apenas popularizam certos alimentos, mas também os recontextualizam, atribuindo-lhes novos significados culturais e sociais.

Apesar do seu apelo, a “porn food” não está isenta de críticas. Muitos argumentam que a obsessão por imagens de comida contribui para uma desconexão entre o que vemos e o que realmente consumimos. As fotografias, muitas vezes, representam pratos que são mais estéticos do que práticos, criados para serem admirados e não necessariamente comidos.

Além disso, a produção destas imagens pode gerar desperdício alimentar. Ingredientes são frequentemente descartados após sessões fotográficas, e pratos inteiros são preparados apenas para serem fotografados. Este paradoxo — a celebração visual da comida num mundo onde milhões ainda enfrentam a fome — levanta questões éticas importantes.

Por outro lado, a “porn food” também tem o potencial de inspirar mudanças positivas. Muitos utilizadores relatam que as imagens de comida os incentivam a experimentar novas receitas, a cozinhar mais em casa e até a adotar hábitos alimentares mais saudáveis. A popularidade de pratos vegetarianos e vegan nas redes sociais, por exemplo, tem contribuído para um aumento do interesse por dietas mais sustentáveis.

A “porn food”, portanto, não é apenas um fenómeno das redes sociais, mas parte de uma tradição mais ampla de representar a comida como algo que vai além da nutrição. Seja no cinema, na literatura ou no Instagram, a comida continua a ser um espelho das nossas aspirações, desejos e contradições.

Literatura recomendada
Barthes, Roland, Mythologies, Seuil, 1957.
Mennell, Stephen, All Manners of Food: Eating and Taste in England and France from the Middle Ages to the Present, University of Illinois Press, 1996.
Mintz, Sidney, Sweetness and Power: The Place of Sugar in Modern History, Penguin, 1986.

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