
A história do queijo Roquefort, um dos mais antigos e prestigiados queijos do mundo, transcende a sua origem nas cavernas calcárias do sul de França para se transformar num caso emblemático de disputas comerciais internacionais. No início do século XXI, este queijo de leite cru de ovelha, com o seu característico veio azul, tornou-se o centro de uma acesa batalha regulatória entre França e Austrália, revelando tensões profundas entre tradição cultural e segurança alimentar, entre protecionismo e livre comércio.
A génese do conflito: regulamentação alimentar e princípio de equivalência
A origem do conflito remonta ao final da década de 1990, quando a Austrália mantinha uma posição restritiva em relação à importação de queijos de leite cru. O Código Alimentar australiano exigia que todos os queijos fossem produzidos com leite pasteurizado ou, alternativamente, termizado a 62,2°C durante quinze segundos, desde que o queijo fosse armazenado por pelo menos noventa dias após a sua produção. Esta regulamentação, fundamentada em preocupações de saúde pública, efetivamente proibia a importação de queijos tradicionais de leite cru, incluindo o Roquefort.
Em 1998, a Suíça tornou-se a primeira nação a desafiar esta barreira comercial, peticionando à Austrália para permitir a importação dos seus queijos Emmental, Gruyère e Sbrinz, todos produzidos com leite cru. Este caso tornou-se o primeiro teste ao “Princípio de Equivalência” no comércio internacional, um conceito estabelecido no Acordo da Ronda do Uruguai sob o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio). Este princípio estabelece que, embora um país possa definir os seus próprios padrões de segurança alimentar, outros países podem satisfazer esses requisitos utilizando medidas alternativas que proporcionem o mesmo nível de proteção à saúde pública.
A Suíça apresentou extensa documentação científica para corroborar a sua alegação de que estes queijos atingiam um nível de segurança comparável ao da pasteurização. Após análise, as autoridades australianas concordaram, estabelecendo um precedente significativo para o comércio internacional de queijos de leite cru. Posteriormente, em 2002, a Austrália realizou voluntariamente uma revisão de queijos duros de ralagem, como o Parmigiano-Reggiano e o Grana Padano, concluindo também que estes atingiam o nível adequado de proteção à saúde pública.
O caso Will Studd: um ativista e o seu queijo proibido
Enquanto estas mudanças ocorriam no cenário regulatório, a Austrália, tal como os Estados Unidos, experimentava um renascimento do interesse por queijos tradicionais. Uma voz proeminente neste movimento era Will Studd. Em 2001, Studd, proprietário de uma empresa grossista de queijos, decidiu empreender um teste não oficial ao Princípio de Equivalência, importando queijo Roquefort de França. À chegada, o queijo foi apreendido pelas autoridades australianas por violar o código alimentar e permaneceu retido durante quase dois anos enquanto a decisão era contestada. Por fim, o tribunal manteve a decisão de que o Roquefort violava o Código Alimentar Australiano, e o queijo teve de ser destruído.
Studd organizou um funeral para o queijo, enterrando-o com todas as honras e atraindo atenção mediática internacional para a causa dos queijos artesanais de leite cru. O seu protesto não era apenas sobre um produto específico, mas sobre o direito de preservar tradições alimentares centenárias face à crescente homogeneização das normas alimentares globais.
A intervenção oficial francesa: diplomacia do queijo
A França, berço do Roquefort e defensora fervorosa das suas tradições gastronómicas, não ficou satisfeita com a decisão australiana. Em 2004, o governo francês decidiu testar oficialmente o Princípio de Equivalência com o queijo Roquefort, transformando o que era inicialmente um caso individual num assunto de Estado.
O Roquefort apresentava desafios significativamente maiores em termos de segurança alimentar comparado com os queijos suíços e italianos anteriormente aprovados. Devido à ausência de aquecimento durante a sua produção, ao elevado teor de humidade e ao pH muito alto que se desenvolve durante a maturação, o Roquefort comporta um risco mais elevado de intoxicação alimentar. Por isso, representava um desafio muito maior na conceção de um programa eficaz de redução de riscos.
O governo francês submeteu volumosa documentação sobre a segurança do Roquefort, incluindo estudos científicos detalhados sobre os seus métodos de produção e controlo de qualidade. As autoridades australianas levaram um ano a analisar esta documentação e a tomar uma decisão. No final, a Austrália concordou que o Roquefort, tal como os queijos suíços e italianos, atingia o nível adequado de proteção à saúde pública.
Esta vitória francesa representou uma mudança decisiva no ímpeto do comércio internacional de queijos de leite cru, afastando-se da proibição generalizada e aproximando-se de um maior acesso ao mercado. O caso demonstrou que tradição e segurança não são necessariamente antagónicas, e que sistemas de produção ancestrais podem incorporar medidas de controlo que garantam a segurança alimentar.
Além do Roquefort: implicações mais amplas para o comércio internacional
O caso Roquefort ilustra tensões mais profundas entre os Estados Unidos e a Europa relativamente às regulamentações de segurança alimentar, que se estendem por todo o sistema alimentar. Os EUA têm uma longa história de adoção de novas tecnologias na produção e processamento de alimentos, abandonando práticas tradicionais em nome do progresso. Os europeus, em contraste, mantêm uma ligação mais forte com alimentos tradicionais e uma maior desconfiança em relação a novas tecnologias alimentares.
Estas diferenças culturais e filosóficas têm levado a conflitos em muitas áreas, incluindo disputas acesas sobre o uso de hormonas de crescimento e antibióticos na criação de gado bovino, hormonas de crescimento na produção de leite, culturas geneticamente modificadas e a clonagem de animais de quinta. No caso da carne bovina tratada com hormonas, a disputa tem persistido em litígios na OMC (Organização Mundial do Comércio) por mais de uma década.
Em 2009, esta disputa quase produziu uma vítima inesperada: o queijo Roquefort. Os EUA ameaçaram triplicar a taxa de importação sobre o Roquefort em retaliação pela recusa da União Europeia em acatar uma decisão da OMC relativa ao uso de hormonas na produção de carne bovina. Tal ação teria feito o preço do Roquefort disparar para cerca de 60 dólares por libra no retalho. A UE recuou antes que isso acontecesse, evitando assim uma guerra comercial total centrada no queijo.
O paradoxo da globalização: entre a homogeneização e a valorização da diversidade
O caso Roquefort-Austrália representa um paradoxo fundamental da globalização alimentar. Por um lado, a integração dos mercados globais e a harmonização das normas de segurança alimentar tendem a favorecer a homogeneização, potencialmente ameaçando tradições alimentares locais. Por outro lado, a globalização também criou um mercado internacional para produtos alimentares distintivos e autênticos, valorizando precisamente aquilo que é único e enraizado em tradições específicas.
Este paradoxo manifesta-se na tensão entre duas visões concorrentes da segurança alimentar. A abordagem tecnocientífica, predominante nos países anglo-saxónicos, enfatiza a eliminação de riscos através de processos padronizados como a pasteurização. A abordagem tradicional europeia, por sua vez, valoriza o conhecimento acumulado ao longo de gerações e os métodos artesanais de controlo de qualidade.
O conceito francês de terroir – a noção de que diferentes regiões geográficas possuem ambientes únicos que influenciam de forma singular a qualidade e o carácter dos alimentos ali produzidos – está no cerne desta visão alternativa. As diferenças podem resultar de uma variedade de fatores como solo, clima e topografia, bem como da tecnologia tradicional e práticas desenvolvidas pela população local ao longo de longos períodos, delicadamente ajustadas ao ambiente local.
Assim, os europeus tendem a ver os seus queijos tradicionais como produtos únicos, resultantes de um lugar de origem específico onde as ações dos queijeiros locais foram moldadas pelo ambiente circundante ao longo de séculos. As pastagens, raças animais locais, microflora ambiental, condições de temperatura e humidade, características topológicas e geológicas, tudo contribui para a singularidade dos queijos tradicionais locais.
Perspetivas futuras
A história recente pode oferecer algumas pistas sobre para onde nos dirigimos no futuro. O ressurgimento da produção tradicional de queijo nos Estados Unidos e na Austrália aponta para uma mudança cultural que se estende muito além do queijo. Um segmento crescente do público questiona o modelo tecnológico de produção e processamento de alimentos de menor custo.
Esta tendência manifesta-se em vários movimentos de base que ganharam um impulso considerável nos últimos anos: agricultura sustentável, bem-estar animal, alimentos orgânicos, alimentos artesanais, galinhas de campo livre e gado alimentado a erva. Todos estes movimentos refletem um crescente desconforto com o sistema alimentar industrial de menor custo.
Se esta tendência continuar, a perspetiva dos países anglo-saxónicos provavelmente aproximar-se-á gradualmente da europeia, à medida que os funcionários eleitos e os decisores políticos respondem à mudança da vontade popular. Resta saber até que ponto esta aproximação ocorrerá. No curto prazo, pelo menos, alguém terá de pagar, e pagar caro, para substituir a produção e o processamento de menor custo por alternativas mais tradicionais e sustentáveis.
As mudanças culturais certamente podem impulsionar mudanças no sistema alimentar, mas, no final, as realidades económicas são inescapáveis e a questão permanece: quem pagará pela mudança? O consumidor sozinho terá de suportar o custo, ou o consumidor em parceria com o público, sob a forma de políticas governamentais favoráveis que incentivem alternativas ao modelo industrial?
O caso Roquefort demonstra que, quando valores culturais profundamente enraizados estão em jogo, as sociedades podem optar por preservar tradições mesmo que isso implique custos económicos mais elevados. A batalha pelo Roquefort não foi apenas uma disputa comercial, mas um confronto entre diferentes visões do que constitui um sistema alimentar desejável – um debate que continua a moldar as políticas alimentares globais e as relações internacionais no século XXI.



