A mesa dividida: sabores reunificados


A reunificação da Alemanha em 1990 não representou apenas uma transformação política e económica, mas também uma profunda revolução gastronómica. Quando o Muro de Berlim caiu, dois sistemas alimentares distintos, desenvolvidos ao longo de quatro décadas de separação, colidiram abruptamente. De um lado, a República Federal Alemã (RFA), com a sua abundância de produtos e influências internacionais; do outro, a República Democrática Alemã (RDA), com a sua escassez planeada e criatividade culinária nascida da necessidade.

Durante os 40 anos de separação, as duas Alemanhas desenvolveram sistemas alimentares fundamentalmente diferentes. Na Alemanha Ocidental, o chamado “milagre económico” (Wirtschaftswunder) trouxe uma abundância de alimentos e uma crescente internacionalização da dieta. Já na década de 1950, a RFA experimentava o que alguns historiadores chamaram de Fresswelle (onda de gula), caracterizada pelo consumo exuberante de alimentos ricos em gordura e proteína animal, como resposta aos anos de privação durante e após a Segunda Guerra Mundial.

O chef e apresentador de televisão Clemens Wilmenrod tornou-se uma figura emblemática deste período, introduzindo pratos exóticos como o Toast Hawaii (torrada com fiambre, ananás e queijo gratinado) nas casas alemãs ocidentais. Wilmenrod conjurava refeições completas sem quaisquer restrições no uso de produtos de conveniência, deixando a sua fantasia correr livremente em termos de nomes e conotações.

Em contraste, a RDA desenvolveu um sistema alimentar baseado na planificação centralizada, com frequentes problemas de abastecimento. O governo comunista tentou criar uma “cozinha socialista” que enfatizava a eficiência e a nutrição científica sobre o prazer gastronómico. Contudo, a escassez de ingredientes levou a uma cultura de improvisação culinária. O Goldbroiler (frango grelhado) tornou-se um símbolo da tentativa do regime de criar alternativas socialistas aos alimentos ocidentais como o frango frito americano.

A separação política criou não apenas duas economias, mas também duas culturas alimentares distintas, com diferentes valores, técnicas e ingredientes preferidos. Enquanto a Alemanha Ocidental abraçava influências internacionais e a abundância, a Oriental desenvolvia uma cozinha de escassez criativa e nostalgia pelos sabores tradicionais.

A queda do Muro de Berlim em 1989 e a subsequente reunificação em 1990 provocaram um choque cultural também à mesa. Os alemães orientais, habituados à escassez, foram subitamente expostos à abundância de produtos ocidentais. Supermercados repletos de produtos antes inacessíveis substituíram as lojas estatais com prateleiras semi-vazias.

Inicialmente, muitos cidadãos da antiga RDA rejeitaram os seus próprios produtos alimentares em favor das novidades ocidentais. Ninguém queria mais os produtos da RDA. Tudo o que vinha do Ocidente era melhor, mesmo que não fosse. Esta rejeição inicial do património culinário oriental foi parte de um fenómeno mais amplo de desvalorização da cultura da RDA após a reunificação.

No entanto, esta fase inicial de deslumbramento com os produtos ocidentais foi seguida por uma reavaliação mais sóbria. Muitos alemães orientais começaram a sentir nostalgia pelos sabores familiares da sua juventude. Produtos como o Spreewald Gurken (pepinos em conserva da região de Spreewald) e o Rotkäppchen Sekt (espumante) sobreviveram à transição e até ganharam popularidade em toda a Alemanha reunificada.

Paralelamente, os alemães ocidentais descobriram alguns tesouros culinários do leste. O filme “Good Bye, Lenin!” (2003) de Wolfgang Becker ilustra bem esta dinâmica, com o protagonista a procurar desesperadamente produtos da RDA para a sua mãe, que esteve em coma durante a queda do Muro. O filme captura a forma como certos alimentos se tornaram símbolos de identidade e memória coletiva.

Não foi um processo simples de assimilação, mas antes uma negociação complexa entre diferentes memórias gustativas, valores e práticas alimentares. A reunificação culinária revelou-se tão complexa quanto a política e a económica.

A partir de meados da década de 1990, emergiu um fenómeno conhecido como Ostalgie (nostalgia pelo leste), que incluía uma revalorização da cultura alimentar da antiga RDA. Restaurantes temáticos começaram a servir pratos típicos da Alemanha Oriental, como o Jägerschnitzel (costeleta panada com molho de cogumelos) ou o Soljanka (sopa de origem russa popular na RDA).

Esta nostalgia gastronómica não era apenas uma questão de sabor, mas também de identidade. Para muitos alemães orientais, os alimentos da RDA representavam uma ligação com um passado que parecia ter sido apagado pela reunificação. A Ostalgie pode ser interpretada como uma forma de resistência à narrativa dominante que retratava a RDA apenas como um estado falido e repressivo.

Será que esta nostalgia culinária representa apenas um olhar romântico para o passado? Não necessariamente. A recuperação de tradições alimentares da RDA também pode ser vista como uma forma de resistência à globalização gastronómica e uma afirmação de identidade regional num mundo cada vez mais homogeneizado.

A reunificação coincidiu com mudanças significativas na gastronomia global. A partir dos anos 1990, chefs alemães começaram a reinterpretar a cozinha tradicional com técnicas modernas, um movimento que ficou conhecido como Neue deutsche Küche (Nova Cozinha Alemã).

Gerhard Gartner foi um dos pioneiros deste movimento. Quando começou a utilizar produtos alemães e a inspirar-se nas receitas da sua mãe no seu restaurante de duas estrelas Michelin em Aachen, em 1986, colegas e críticos acusaram-no de nacionalismo excessivo e fascismo culinário. No entanto, o seu trabalho abriu caminho para uma nova apreciação da gastronomia alemã.

A reunificação ampliou o repertório desta nova cozinha alemã, incorporando elementos tanto do leste quanto do oeste. Chefs contemporâneos como Tim Raue em Berlim combinam técnicas internacionais com ingredientes e tradições alemãs de ambos os lados do antigo Muro.

Ao mesmo tempo, a Alemanha reunificada tornou-se mais aberta a influências culinárias globais. A comida turca, introduzida pelos trabalhadores convidados (Gastarbeiter) desde os anos 1960 na Alemanha Ocidental, espalhou-se para o leste após a reunificação. O döner kebab, em particular, tornou-se um dos alimentos de rua mais populares em toda a Alemanha, simbolizando a crescente diversidade cultural do país.

A reunificação também coincidiu com o crescimento do movimento de alimentos orgânicos e sustentáveis. A Alemanha Oriental, apesar das suas deficiências, tinha mantido algumas práticas agrícolas tradicionais que se revelaram valiosas na era da agricultura sustentável. Os jardins urbanos, comuns na RDA como forma de complementar o abastecimento alimentar, ganharam nova vida como espaços de produção sustentável e ligação com a natureza.

Como se posiciona a gastronomia alemã reunificada no contexto global? Longe de ser apenas uma fusão de tradições do leste e oeste, a nova cozinha alemã representa uma síntese criativa de influências históricas, regionais e internacionais, refletindo a complexa identidade da Alemanha contemporânea.

Que lições podemos extrair da experiência alemã para compreender a relação entre alimentação e identidade nacional? A história culinária da Alemanha reunificada sugere que as tradições alimentares são simultaneamente resistentes e adaptáveis, capazes de absorver influências externas sem perder a sua essência. Mostra também como a comida pode servir como veículo para negociar memórias coletivas e identidades em tempos de mudança histórica.

Literatura recomendada
Heinzelmann, Ursula. Beyond Bratwurst: A History of Food in Germany. Reaktion Books, 2014.
Pence, Katherine. The Taste of Power: Food and Ration Policy in the GDR. Cambridge University Press, 2020.
Sutton, David E. Remembrance of Repasts: An Anthropology of Food and Memory. Berg Publishers, 2001.

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