
A literatura árabe medieval exerceu uma influência profunda e duradoura na cozinha europeia, particularmente durante o período do Renascimento. Esta transferência de conhecimentos culinários não se limitou apenas a ingredientes e técnicas, mas também abrangeu conceitos médicos, estéticos e culturais que transformaram fundamentalmente a forma como os europeus compreendiam e preparavam os seus alimentos. Através de manuscritos, tratados médicos e livros de receitas, o legado árabe infiltrou-se nas cozinhas aristocráticas europeias, estabelecendo as bases para o que viria a ser a gastronomia moderna ocidental.
A transmissão do conhecimento culinário árabe
Como chegaram as ideias culinárias árabes à Europa medieval e renascentista? A resposta encontra-se numa complexa rede de intercâmbios culturais que ocorreram através de múltiplos canais. Um dos mais significativos foi a tradução e adaptação do Tacuinum Sanitatis, um manual de saúde árabe que ganhou enorme popularidade na Europa. Versões ilustradas deste manuscrito foram produzidas no norte de Itália em meados do século XV, apresentando descrições detalhadas de alimentos e ingredientes com as suas propriedades medicinais associadas.
O Tacuinum Sanitatis não era apenas um livro de receitas, mas um compêndio abrangente que integrava a teoria humoral da medicina com recomendações práticas sobre alimentação. As suas ilustrações ofereciam vislumbres da vida quotidiana, mostrando detalhes como toalhas de mesa brancas com padrões pretos nas extremidades, pavimentos em azulejo preto e branco, e até mesmo o uso de maçãs e laranjas como rolhas para garrafas de vinho e água – práticas que se tornaram comuns nas mesas europeias.
A Península Ibérica, com a sua longa história de presença muçulmana, serviu como outro importante ponto de entrada para a influência culinária árabe. A cozinha catalã, em particular, absorveu numerosos elementos árabes, como evidenciado por receitas encontradas em livros de culinária como o Libre del coch de Mestre Robert (também conhecido como Rupert de Nola), que foi chef na corte aragonesa em Nápoles sob Ferrante I.
Especiarias e novos sabores: a revolução sensorial
A introdução de especiarias orientais transformou radicalmente o perfil de sabor da cozinha europeia medieval e renascentista. Antes do contacto com a civilização muçulmana, a culinária europeia era relativamente simples em termos de aromatização. O restabelecimento do comércio com o Mediterrâneo oriental, em parte resultado do comércio aberto com os estados cruzados, trouxe uma abundância de novos produtos para a Europa Ocidental.
Que especiarias dominavam esta nova paisagem culinária? Pimenta e canela da Índia, cravos e noz-moscada da atual Indonésia, gengibre, frutos secos, nozes como amêndoas e pinhões, e molhos agridoces. O açúcar, também uma iguaria importada, era usado liberalmente nos pratos. A este repertório foram entretanto adicionados grãos do paraíso da costa Meleguetta da África Ocidental, cubebas e pimenta longa, botões de cássia, espicanardo e galanga – especiarias que desapareceram completamente da cozinha europeia moderna.
Em certo sentido, a cozinha medieval tardia estava esteticamente mais próxima da cozinha indiana moderna, que foi ela própria influenciada pela culinária islâmica medieval. Esta preferência por especiarias não era, como frequentemente se supõe, para mascarar o odor de carne em decomposição – qualquer pessoa que pudesse pagar as especiarias também poderia pagar carne fresca. Tratava-se antes de uma questão de estatuto social e distinção.
Técnicas culinárias e estética visual
A influência árabe estendeu-se além dos ingredientes para abranger técnicas culinárias e apresentação visual. Uma característica distintiva da cozinha medieval influenciada pelos árabes era a predileção por colorir alimentos: amarelo com açafrão, verde usando ervas, ou vermelho com sândalo ou alcana. A comida podia até ser adornada com ouro para os verdadeiramente pródigos.
Os cozinheiros medievais também apreciavam molhos finamente moídos e peneirados, engrossados com migalhas de pão e tingidos com vinagre ou verjus, o sumo de uvas verdes. O leite de amêndoa foi uma invenção única dos chefs medievais, usado em substituição do leite regular durante a Quaresma. Alimentos perfumados, especialmente com água de rosas, foram também legados da influência do Médio Oriente.
Um exemplo ilustrativo desta estética pode ser encontrado no Viandier, atribuído a Taillevent (Guillaume Tirel), chef do rei Carlos V de França a partir da década de 1360. As receitas neste livro de culinária refletem a cozinha medieval tardia no seu apogeu, com densos aglomerados de especiarias a predominar no perfil de sabor. Um prato típico, chamado boussac, de lebres ou coelhos, envolvia selar a carne num espeto ou na grelha, cortá-la em pedaços e fritá-la em gordura de bacon, infundir torradas queimadas em caldo de carne com vinho, coar e ferver tudo junto, e depois adicionar gengibre moído, canela, cravos e grãos do paraíso, infundidos em verjus. O resultado deveria ser castanho escuro e não muito espesso.
Medicina e alimentação: a teoria humoral
A teoria humoral da medicina, que teve as suas origens na Grécia antiga mas foi significativamente desenvolvida e transmitida pelos árabes, teve uma influência profunda na forma como os europeus pensavam sobre a comida. De acordo com esta teoria, todos os alimentos possuíam qualidades específicas (quente, frio, húmido, seco) que afetavam o equilíbrio dos humores no corpo.
A literatura dietética árabe, como o trabalho de Magninus Mediolanensis (Maino de Maineri, falecido c. 1364), Regimen of Health, contém um capítulo sobre molhos, o Opusculum de Saporibus. Embora reconhecesse que as pessoas inventaram molhos por prazer e frequentemente exageravam, o autor ainda pensava que eles poderiam servir um propósito valioso na manutenção da saúde, para corrigir as qualidades potencialmente prejudiciais de certos alimentos ou para auxiliar na digestão.
Por exemplo, para vitela cozida, era recomendado um molho verde, feito com salsa, alecrim, pão torrado, gengibre, cravo e algum vinagre, especialmente para contrariar o calor do verão. Para porco assado, os cozinheiros deveriam usar os pingos com vinho e cebolas no inverno, ou apenas mostarda ou rúcula. A lógica era que a mostarda quente cortava a carne viscosa e tornava-a mais digerível.
Evolução e adaptação: do medieval ao renascentista
À medida que a Europa avançava para o século XVI, a cozinha começou a divergir dos padrões medievais, embora mantendo muitos elementos da influência árabe. Os primeiros livros de culinária que começam a refletir um novo estilo de cozinha do início do século XVI foram impressos na década de 1540, e podem estar distantemente relacionados, uma vez que partilham certas receitas e preferências de sabor.
O Livre fort excellent de cuysine, publicado em Lyon em 1542, oferece uma imagem decente das preferências de sabor no século XVI. As receitas refletem preferências de sabor em mudança, mais notavelmente a prevalência de produtos lácteos em molhos e outras receitas. Por exemplo, há uma receita simples de lúcio na qual o peixe é frito em manteiga e polvilhado com verjus e laranja. Da mesma forma, um salmão é escalfado e guarnecido com cebola finamente picada e salsa, e um toque de azeite e vinagre.
As especiarias tornaram-se um pouco menos proeminentes, embora o açúcar permanecesse um aromatizante importante e até universal. Em vez de densos e complexos aglomerados de especiarias, a cozinha moveu-se em direção à leveza e à graça, com pratos de vegetais simples e o uso de frutas. Por exemplo, encontramos um capão assado num molho de vinho tinto, laranja e alecrim, com muito açúcar.
O legado duradouro
A influência árabe na cozinha europeia não foi um fenómeno passageiro, mas deixou um legado que continua a moldar as tradições culinárias até aos dias de hoje. Muitos dos pratos que consideramos tipicamente europeus têm as suas raízes nesta transferência cultural. O blancmange, por exemplo, começou como um prato para inválidos – uma combinação espessa de peito de capão moído e coado e leite de amêndoa, guarnecido com sementes de romã e polvilhado com açúcar. Os livros de culinária posteriores embelezaram-no com água de rosas e ligaram-no com amido de arroz. O seu descendente é um pudim doce de amêndoa, sem o capão.
A adoção de técnicas de cultivo de frutas é outro exemplo do impacto da influência árabe. No século XVI, o cultivo de frutas tinha-se tornado uma atividade na moda, possivelmente começando em Itália e espalhando-se subsequentemente para o resto do continente. As coleções de árvores de fruto mantidas pelos Médici em Florença no final do século XVI e XVII, bem como as cultivadas por outras famílias nobres e governantes na Europa, são um sinal de como a fruta se tinha libertado da imagem negativa da Idade Média e se tinha transformado num alimento de luxo completo – apesar da má imprensa que ainda recebia dos médicos.
A influência árabe na cozinha europeia representa um dos mais significativos intercâmbios culturais na história da alimentação. Através da transmissão de conhecimentos culinários, técnicas, ingredientes e conceitos médicos, a literatura árabe medieval ajudou a estabelecer as bases para o que viria a ser a gastronomia europeia moderna. Esta transferência cultural não foi apenas uma questão de adotar novos sabores, mas de integrar uma visão de mundo completamente diferente sobre a relação entre comida, saúde e prazer.



