
A Idade Média foi um período em que a mesa não era apenas um local de alimentação, mas também um espaço de interação social e demonstração de status. As regras de etiqueta, muitas vezes compiladas em manuais destinados à nobreza e aos seus descendentes, desempenhavam um papel crucial na manutenção da ordem e do decoro durante as refeições. Contudo, estas normas não surgiram apenas por questões de elegância ou boas maneiras. A higiene, a convivência e a necessidade de evitar comportamentos que pudessem causar desconforto aos outros eram preocupações centrais. Entre as práticas mais condenadas pelos livros de etiqueta da época estavam coçar-se ou soprar o nariz à mesa, ações que, além de serem vistas como grosseiras, levantavam questões de saúde e limpeza num mundo onde a proximidade física era inevitável e as condições sanitárias eram limitadas.
A mesa como espaço de interação e hierarquia
Na Idade Média, as refeições eram momentos de grande importância social, especialmente entre a nobreza. A disposição dos lugares à mesa refletia a hierarquia, com os convidados mais importantes ocupando os assentos de maior destaque. Este contexto tornava essencial que cada indivíduo demonstrasse autocontrolo e respeito pelos outros, uma vez que o comportamento de um único comensal podia influenciar a experiência de todos.
Os manuais de etiqueta, como os escritos por Fra Bonvicino da Riva no final do século XIII, destacavam a necessidade de lavar as mãos antes de comer, não apenas por razões de higiene, mas também para tranquilizar os outros comensais. A partilha de pratos e travessas era comum, e o uso dos dedos para levar os alimentos à boca tornava a limpeza das mãos uma questão de confiança mútua. Contudo, manter as mãos limpas durante toda a refeição era um desafio, especialmente num ambiente onde os talheres eram escassos e os guardanapos ainda não eram amplamente utilizados.
A ausência de utensílios como garfos, que só se tornariam comuns na Europa séculos mais tarde, obrigava os comensais a usar as mãos para manipular os alimentos. Este facto tornava ainda mais importante evitar gestos que pudessem ser considerados repulsivos, como coçar-se ou tocar em partes do corpo consideradas “impróprias”. A etiqueta medieval condenava tais práticas não apenas por questões de decoro, mas também porque estas ações podiam transferir sujidade ou parasitas para os alimentos partilhados.
A higiene e os desafios da convivência
A condenação de comportamentos como soprar o nariz à mesa ou coçar-se em público estava profundamente ligada às condições de vida da época. A presença de pulgas e piolhos era uma realidade constante, mesmo entre as classes mais abastadas. Os livros de etiqueta recomendavam que, caso fosse absolutamente necessário coçar-se, o indivíduo deveria fazê-lo de forma discreta, utilizando um pedaço de tecido ou a própria roupa, em vez de recorrer diretamente às mãos. Esta orientação visava minimizar o impacto visual e higiénico do gesto, preservando a harmonia do ambiente.
Giovanni della Casa, um autor renascentista que escreveu sobre boas maneiras, criticava severamente aqueles que, durante as refeições, limpavam o suor ou o nariz com os guardanapos, objetos que deveriam ser reservados exclusivamente para limpar as mãos e a boca. Este tipo de comportamento era visto como uma violação das normas de decoro e uma demonstração de desrespeito pelos outros presentes.
A partilha de alimentos e utensílios tornava a higiene pessoal uma questão de interesse coletivo. Um exemplo curioso é o uso de “trenchers”, fatias de pão duro que serviam como pratos individuais. Após a refeição, estas fatias podiam ser consumidas pelo próprio comensal, dadas aos pobres ou oferecidas aos cães. Este sistema, embora prático, reforçava a necessidade de evitar gestos que pudessem contaminar os alimentos, como colocar ossos roídos de volta nos pratos partilhados, outro hábito frequentemente condenado pelos manuais de etiqueta.
O papel dos livros de etiqueta na educação
Os livros de etiqueta medieval, destinados principalmente aos filhos da nobreza, tinham como objetivo moldar o comportamento desde cedo, preparando os jovens para a vida em sociedade. Estes textos não apenas descreviam o que era considerado aceitável, mas também condenavam práticas que, embora comuns, eram vistas como indesejáveis.
Fra Bonvicino, por exemplo, alertava contra o hábito de colocar os dedos nos ouvidos ou de tocar na cabeça durante as refeições, ações que podiam ser interpretadas como sinais de desleixo ou falta de respeito. Outros autores iam mais longe, detalhando comportamentos ainda mais específicos, como evitar mexer nos pratos à procura das melhores porções ou soprar o nariz com os dedos. Estas recomendações, embora possam parecer exageradas aos olhos modernos, eram essenciais num contexto onde a proximidade física e a partilha de alimentos tornavam qualquer gesto impróprio mais evidente e potencialmente ofensivo.
Uma história interessante que ilustra a importância destas normas envolve um jovem clérigo que, durante um jantar com um arcebispo, consumiu inadvertidamente um prato inteiro de aves raras, desconhecendo o seu valor e a etiqueta que ditava que deveria partilhá-las com os outros convidados. Este incidente, embora aparentemente trivial, custou-lhe a oportunidade de avançar na sua carreira, demonstrando como o comportamento à mesa podia ter consequências significativas.
A preocupação com a etiqueta não se limitava à nobreza. Mesmo entre os camponeses e as classes mais baixas, existiam normas informais que regulavam o comportamento durante as refeições. Embora menos documentadas, estas regras refletiam a necessidade de manter a ordem e a convivência num ambiente onde os recursos eram frequentemente escassos e a partilha era essencial.
A etiqueta à mesa na Idade Média, portanto, não era apenas uma questão de boas maneiras, mas uma resposta prática aos desafios de convivência e higiene num mundo onde a proximidade física e a partilha de alimentos eram inevitáveis. As normas que condenavam práticas como coçar-se ou soprar o nariz à mesa tinham como objetivo preservar a harmonia social e garantir que as refeições, momentos centrais da vida comunitária, decorressem de forma ordeira e agradável.
Literatura recomendada
Della Casa, Giovanni, Il Galateo, Penguin Books, 2002.
Cantor, Norman, A Civilização Medieval, Zahar, 1986.
Connelly, Mark, Manners and Customs in Medieval Society, Routledge, 2001.