Quem preparou o pão e o vinho da Última Ceia?

Natureza morta, com um pão ao centro sobre prato branco, algumas fatiasm um cadelabro à direita e um copo de vinho tinto à esqueda, espigas de cereais decoram a mesa

A Última Ceia de Jesus, imortalizada em textos bíblicos e representada em obras de arte ao longo dos séculos, é frequentemente vista como um momento de transcendência espiritual. Este episódio, que marca a despedida de Jesus dos seus discípulos antes da crucificação, é celebrado como o instante em que o pão e o vinho se transformaram em símbolos do corpo e do sangue de Cristo, fundando o sacramento da Eucaristia. Contudo, por detrás da solenidade e do significado teológico, surge uma questão raramente abordada: quem preparou o pão e o vinho que estiveram no centro deste evento?

A resposta a esta pergunta leva-nos a refletir sobre o papel das práticas quotidianas e das pessoas anónimas que, através do seu trabalho, sustentaram os momentos mais marcantes da história religiosa. Afinal, o pão não surge por milagre, e o vinho não se materializa sem mãos que o produzam.

O pão, alimento básico em muitas culturas, era um elemento central na dieta do mundo mediterrânico do século I. Na tradição judaica, o pão tinha um significado profundo, especialmente durante a celebração da Páscoa, quando se utilizava o pão ázimo, sem fermento, para relembrar a pressa com que os israelitas fugiram do Egito. Este detalhe é crucial para compreender o contexto da Última Ceia, que ocorreu durante a celebração da Páscoa judaica.

A preparação do pão, especialmente o ázimo, era uma tarefa que exigia cuidado e dedicação. As mulheres, tradicionalmente responsáveis pela cozinha, desempenhavam um papel essencial neste processo. Desde a moagem do trigo até à mistura da farinha com água e à cozedura rápida, cada etapa era realizada com precisão para garantir que o pão estivesse pronto a tempo das celebrações. É provável que, no caso da Última Ceia, o pão tenha sido preparado por mulheres da comunidade que seguiam Jesus ou por membros da casa onde o jantar foi realizado.

A tradição judaica atribuía grande importância à pureza dos alimentos, especialmente durante a Páscoa. Assim, quem preparou o pão teria seguido rigorosamente as regras de limpeza e os rituais necessários para garantir que o alimento fosse adequado para o consumo. Este cuidado reflete não apenas a devoção religiosa, mas também o respeito pelo ato de alimentar os outros, um gesto que transcende o simples ato de cozinhar e se torna uma forma de serviço e amor.

O vinho, outro elemento central da Última Ceia, também carrega consigo uma história de trabalho e simbolismo. Na Palestina do século I, o vinho era uma bebida comum, mas a sua produção envolvia um processo complexo que começava com a colheita das uvas e terminava com a fermentação e o armazenamento.

Embora o vinho utilizado na Última Ceia já estivesse pronto muito antes do evento, a sua presença na mesa remete para o esforço coletivo de agricultores, vinicultores e comerciantes. As uvas, colhidas à mão, eram esmagadas em lagares, muitas vezes com os pés, num processo que exigia força física e paciência. O mosto resultante era colocado em ânforas ou outros recipientes para fermentar, um processo que podia durar semanas ou meses.

Na tradição judaica, o vinho tinha um papel ritual importante, sendo utilizado em celebrações religiosas e refeições especiais. Durante a Páscoa, o vinho era abençoado e partilhado como símbolo de alegria e gratidão. Na Última Ceia, Jesus deu um novo significado a este gesto, transformando o vinho num símbolo do seu sacrifício. No entanto, é importante lembrar que, antes de ser elevado a este nível espiritual, o vinho era o resultado do trabalho árduo de muitas mãos anónimas.

A Última Ceia, como qualquer refeição, não foi apenas um momento de transcendência espiritual, mas também um evento profundamente humano, sustentado por práticas quotidianas e pelo trabalho de pessoas cujos nomes não foram registados. Quem preparou o pão e o vinho pode ter sido uma mulher da comunidade, um servo da casa ou até um amigo próximo de Jesus. O que é certo é que, sem estas mãos invisíveis, o momento que mudou a história do cristianismo não teria sido possível.

Literatura recomendada
Crossan, John Dominic, The Historical Jesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant, HarperOne, 1991.
Finkelstein, Israel e Silberman, Neil Asher, The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts, Free Press, 2001.
Safrai, Shmuel, The Jewish People in the First Century: Historical Geography, Political History, Social, Cultural and Religious Life and Institutions, Van Gorcum, 1976.

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