
A obra Don Juan, escrita por Lord Byron, representa um dos textos mais significativos do romantismo inglês, não apenas devido à sua abordagem irreverente e satírica, mas também pela maneira como incorpora elementos do quotidiano, como a alimentação, para investigar questões mais profundas relacionadas à identidade, ao poder e ao género. Dentre os diversos símbolos presentes no poema, a carne sobressai como um componente fundamental na formação da masculinidade do protagonista e na análise social que Byron desenvolve ao longo da obra. Enquanto alimento, a carne vai além de sua função literal, transformando-se em um meio para abordar questões como virilidade, poder e os exageros da masculinidade heroica e aristocrática.
A carne e a masculinidade heróica
Desde épocas remotas, a carne tem sido vinculada à robustez física e à virilidade. Na literatura clássica, figuras heróicas como Hércules e Aquiles costumam ser retratadas como devoradores ávidos de carne, um alimento que representa a vitalidade requeridas para suas realizações extraordinárias. Ao redigir Don Juan, Byron apropria-se dessa tradição, porém subverte-a por meio de seu tom irónico e crítico. A preferência de Don Juan por carne, em particular a vermelha, é apresentada como um reflexo de sua virilidade, além de representar um indicativo de indulgência e decadência.
No Canto II, no transcorrer do episódio do naufrágio, a conexão entre a carne e a masculinidade é investigada de maneira intensa. Os sobreviventes, aflitos devido à fome, apelam ao canibalismo, uma ação que revela os limites da civilização e da moralidade. Nesse contexto, a carne deixa de representar unicamente um símbolo de força e se transforma em um recordatório da fragilidade humana e da brutalidade que se oculta sob a superfície da sociedade. Don Juan, contudo, distingue-se dos restantes ao recusar a ingestão de carne humana, escolhendo em vez disso mastigar bambu e chumbo. Esse ato, embora pareça irrelevante, fortalece sua imagem como um herói romântico, capaz de controlar os instintos mais básicos e de manter sua integridade moral. A sua recusa em consumir carne humana ressalta a voracidade dos restantes sobreviventes, enfatizando sua superioridade tanto moral quanto física.
O banquete enquanto representativa da masculinidade
Os banquetes em Don Juan transcendem a mera convivência, configurando-se como espaços onde a masculinidade é apresentada e desafiada. A carne, em particular a carne vermelha, assume uma posição de destaque nesses eventos, representando não apenas a virilidade, mas também o poder e o status social. No Canto XV, Byron retrata um banquete suntuoso na residência de Lord e Lady Amundeville, em que a carne é apresentada como o clímax do requinte e da extravagância. Os pratos, elaborados com sofisticação e apresentados em grande quantidade, evidenciam a decadência da aristocracia inglesa, bem como sua obsessão pela estética e pelo exagero.
Todavia, Byron não se restringe a censurar a aristocracia; ele também emprega a carne como uma metáfora da masculinidade tóxica que permeia a sociedade nesse período. O modo como os homens no banquete ingerem a carne – de maneira voraz e desatenta – reflete sua atitude em relação à vida e às interações humanas. Dessa forma, a carne transforma-se num emblema da agressividade e da dominação masculina, ao mesmo tempo que representa sua fragilidade e dependência em relação a prazeres materiais.
Don Juan, ao contrário, é frequentemente apresentado como um consumidor mais comedido e criterioso, o que o diferencia dos demais homens e fortalece sua exclusividade como personagem principal. A relação que ele estabelece com a carne é intrincada: mesmo usufruindo dos encantos gastronómicos, não se entrega a eles de maneira avassaladora, preservando um equilíbrio que o distingue dos excessos da sociedade circundante.
Carne, anseio e identidade masculina
A conexão entre carne e desejo se revela como uma constante na obra de Don Juan. A carne, na qualidade de alimento, é comumente vinculada ao apetite sexual, configurando uma metáfora significativa para investigar a masculinidade e suas ambivalências. Byron emprega essa analogia para reprovar a hipocrisia da sociedade vitoriana, que ostensivamente censurava os excessos enquanto os realizava em segredo.
No Canto III, Don Juan é acolhido por Haidée e sua serva Zoe, que lhe proporcionam um pequeno-almoço modesto, porém nutritivo, constituído por ovos, frutas e mel. Essa ocasião contrasta com os banquetes luxuosos retratados em outras partes e sugere uma masculinidade mais autêntica e harmoniosa, em contraposição à masculinidade artificial e exacerbada da aristocracia. Contudo, à medida que Don Juan se aprofunda na relação com Haidée, a inicial simplicidade de seu consumo é substituída por um crescente anseio por carne, simbolizando sua entrega ao desejo e à paixão.
Nesse contexto, a carne transforma-se num emblema da dualidade da masculinidade: de um lado, simboliza a força e a vitalidade; de outro, revela a vulnerabilidade e a dependência do corpo. Byron emprega essa dualidade para investigar as tensões existentes entre o ideal romântico de masculinidade e as condições da experiência humana, elaborando um retrato complexo e multifacetado do protagonista.
A carne enquanto expressão de crítica social
Além de representar um emblema da masculinidade, a carne em Don Juan funciona como um instrumento para contestar a sociedade daquele período. Byron emprega a carne como um meio para evidenciar as disparidades sociais e as contradições presentes no sistema de classes. Nos banquetes da aristocracia, a carne é exibida como um requinte disponível unicamente para os afluentes, enquanto os indigentes são limitados a uma alimentação básica. Essa desigualdade representa um reflexo das injustiças sociais que Byron critica ao longo do poema.
Simultaneamente, a carne é empregada para desafiar as normas de género e as expectativas atribuídas aos homens. A masculinidade em Don Juan é frequentemente caracterizada pela interação dos homens com a carne, seja por meio do consumo, da negação ou da partilha. Byron contesta essas normas ao introduzir Don Juan como um protagonista que, apesar de ser do sexo masculino, não se submete aos estereótipos característicos de sua época. A sua conexão com a carne é intrincada e dúbia, evidenciando, por um lado, a resistência às normas sociais e, por outro, a procura por uma identidade singular.
Em última instância, a carne em Don Juan transcende sua função meramente alimentar; representa um potente símbolo que compreende as tensões e contradições relacionadas à masculinidade, ao desejo e à sociedade. Byron emprega esse símbolo de maneira magistral para elaborar um retrato profundo e instigante de seu protagonista, ao passo que confronta as normas e expectativas de sua era.