Akbar e a água sagrada do Ganges

Homem em barco raso navegando suavemente junto a um cais

No vasto e diversificado panorama da Índia imperial, a figura do imperador Mughal Akbar destaca-se como um exemplo singular de tolerância e sensibilidade cultural. Embora fosse muçulmano, Akbar demonstrou uma abertura notável para com as tradições e crenças dos seus súbditos hindus, adotando práticas que desafiavam as convenções religiosas da época e reforçavam a sua imagem como um governante inclusivo e visionário.

Uma das medidas mais emblemáticas da sua governação foi a proibição do abate de gado, um gesto de respeito profundo pela sacralidade da vaca na religião hindu. Além disso, Akbar abdicou do consumo de carne bovina, uma decisão que ia além de uma simples política administrativa, revelando o seu esforço consciente para harmonizar as diferenças culturais e religiosas do seu vasto império. Contudo, a sua ligação às tradições hindus não se limitava a estas ações. Akbar desenvolveu uma verdadeira obsessão pela água do rio Ganges, considerada sagrada pelos hindus, atribuindo-lhe propriedades purificadoras e quase divinas.

A devoção de Akbar à água do Ganges era tão intensa que, mesmo quando a sua corte se encontrava a grandes distâncias do rio, ele ordenava que a água fosse transportada em jarros selados, através de uma rede de mensageiros cuidadosamente organizada. Para garantir que a água permanecesse fresca durante as longas viagens, foi implementado um sistema engenhoso de conservação. A água era transferida para garrafas que eram mantidas em recipientes arrefecidos com salitre, um método que permitia manter a temperatura baixa. Quando a corte se aproximava das montanhas dos Himalaias, o gelo natural das altitudes era utilizado para preservar a frescura da água, demonstrando a sofisticação logística e a importância que o imperador atribuía a este ritual.

A peculiar relação de Akbar com a água do Ganges não passou despercebida aos olhos dos viajantes estrangeiros que visitaram a Índia durante o seu reinado. No final do século XVI, o explorador francês Jean-Baptiste Tavernier registou um episódio curioso relacionado com esta prática. Tavernier relatou que, ao misturar a água sagrada com vinho, ele e os seus companheiros sofreram ligeiros “distúrbios internos”. No entanto, os criados que consumiram a água pura, sem qualquer mistura, enfrentaram problemas ainda mais severos, o que levou o explorador a questionar as propriedades da água que tanto fascinavam o imperador. Este relato, embora anedótico, oferece um vislumbre das perceções e interações culturais entre os visitantes europeus e as tradições locais da Índia Mughal.

A obsessão de Akbar pela água do Ganges pode ser interpretada como um reflexo do seu esforço contínuo para criar uma identidade imperial que transcendesse as divisões religiosas. O seu reinado foi marcado por uma série de iniciativas destinadas a promover a coexistência entre hindus e muçulmanos, incluindo a criação de uma nova religião sincrética, o Din-i Ilahi, que procurava unir elementos de várias fés. A sua veneração pela água sagrada, embora excêntrica, simbolizava a sua tentativa de incorporar elementos das tradições hindus na vida da corte Mughal, reforçando a ideia de que o seu império era um espaço de diversidade e integração.

A Índia Mughal sob Akbar era um lugar onde culturas, religiões e práticas se entrelaçavam de formas inesperadas. A reverência do imperador pela água do Ganges, um símbolo central da espiritualidade hindu, é um exemplo fascinante de como as fronteiras entre as tradições podiam ser desafiadas e reinterpretadas. Este episódio, aparentemente trivial, revela a complexidade de um governante que, apesar de ser um líder muçulmano, procurou construir pontes entre as diferentes comunidades do seu império, deixando um legado de tolerância que ainda hoje é lembrado.

Literatura recomendada
Eraly, Abraham, The Mughal Throne: The Saga of India’s Great Emperors, Phoenix, 2004.
Lal, Ruby, Domesticity and Power in the Early Mughal World, Cambridge University Press, 2005.
Richards, John F., The Mughal Empire, Cambridge University Press, 1993.

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